O Lucas é um cara legal, ele trabalha muito para pagar seus estudos, treina três artes marciais diferentes, gosta de falar com tudo mundo (às vezes até demais) e é muito forte. Quando ele começou praticar jiu-jitsu, durante as lutas, como todos nós, ele usava seu maior recurso: a força. Pelo que falavam os mais avançados e o professor, aos poucos ele ia começar ser mais técnico e “dosar” sua força nas lutas. Naqueles dias ruins em que meu joelho não aguentava mais, eu ficava sentada olhando meus parceiros lutarem e a pior parte era ver ele lutando, especialmente com pessoal menor do que ele.
Lembro um dia que lutou com uma menina muito boa, muito magra, e eu só pensava naquilo que muitos repetimos: “a técnica vai superar a força”, mas ela nunca teve chance e, ao final, eu a ouvi chorando no banheiro. Nesse dia, eu falei com meu professor e ele disse para mim que ele já sabia do Lucas, mas acreditava nele e achava que ia demorar só mais um pouco para que ele se aperfeiçoasse. Pensando nas minhas lesões de joelho, ele me aconselhou evitar lutar com Lucas até isso acontecer.
O tempo passou e, enquanto os parceiros que tinham começado treinar na mesma época que Lucas evoluíam, ele continuava usando força demais, parecia não estar aprendendo muito, e até os mais avançados desistiram de passar coisas para ele. Mas Lucas não desistiu, mesmo com a rejeição de muitos parceiros ele continuou treinando e depois de trabalhar muito e poupar, ele conseguiu comprar um kimono (vale a pena esclarecer que os implementos de artes marciais são muito caros na Colômbia e Lucas tinha muitas responsabilidades na época). Pouco tempo depois o sucesso esperado aconteceu. Parecia que aquela armadura de algodão tinha mudado o Lucas. Ele começou a usar menos a força, seu jogo se tornou muito criativo e bonito. Aleluia!
Um dia eu decidi dar uma chance para Lucas e lutei com ele. A luta começa bem e eu tenho a oportunidade de encaixar uma guilhotina nele, mas não dá certo. Continuamos lutando e, quando faltavam dois minutos para a luta acabar, ele pegou minhas costas e fez um mata-leão com crank de pescoço num segundo. Ouço três “crack” e sinto uma dor insuportável.
Tudo acontece muito rápido. Depois desse som horrível, minha visão escurece: “nossa, será que eu dormi?”, não, são as lágrimas que caem, sinto o rosto quente e um choque elétrico que baixa da minha cabeça até minhas mãos que pegam os braços do Lucas com uma força que nunca tinha experimentado. Puxo ele e sinto esse mesmo choque em minha boca: “LUCAS!! O QUE ACONTECE COM VOCÊ?!!” Devo parecer um monstro porque Lucas fica pálido e sinto todo mundo olhando para mim, o tempo para, mas o choque continua controlando meu corpo e leva ele até onde o professor está e consigo balbuciar “posso…ir…banheiro?”. Quando chego no banheiro nem sei quem é essa pessoa que olha no espelho.
A pele dela muda de cor, está verde, vermelha, branca. Respira como um cavalo. Chora como criança. O mundo retoma seu movimento quando ouço a voz do Lucas dizendo: “Oi, Diana, o que aconteceu?”. Verde. “Lucas, cara, você não pode fazer isso, não! Não pode fazer um movimento assim tão rápido. Não pode atirar para matar!”. Vermelha. “Po, eu só coloquei minha mão no meu bíceps, não queria matar não”. Silêncio. Branca. “Eu sei, desculpa. Mas você tem que cuidar seus parceiros, Lucas, não pode ir de 0 a 100 em um segundo”. Testo a magnitude do dano movimentando minha cabeça para os lados, mas consigo movê-lo por apenas alguns centímetros da posição original. Verde, vermelha, branca. O Lucas continua falando, mas não ouço nada, então ele vai embora e diz que não vai continuar lutando hoje.
Quando a aula acabou, o professor falou com ele e o proíbiu de treinar por duas semanas. Eu me desculpei com o professor, pois mesmo sendo o Lucas quem me machucou, eu também não me controlei e interrompi a aula de jeito desrespeitoso. Para conseguir movimentar minha cabeça de novo, eu precisei de uma massagem de duas horas e uma injeção para a dor. Essa noite consegui dormir bem, mas no dia seguinte, quando acordo, só penso naquilo. Podia ter evitado aquela situação? Eu, talvez não, mas o Lucas, sim.
A reflexão feita nos dias seguintes envolve pesquisar detalhes, riscos e advertências sobre algumas técnicas, ler sobre o controle da agressividade e pensar um pouco sobre o perdão. Penso nas intenções de Lucas e minha interpretação dos movimentos dele. Fecho os olhos, conto até 10 e imagino formas melhores de ter reagido à situação. Repito na minha cabeça as palavras do professor sobre o cuidado dos parceiros e aceno, lembro quando ele proíbe Lucas de treinar e sinto a dor dele.
Já passaram três semanas desde que tudo isso aconteceu. Lucas voltou a treinar nesta semana. Não temos falado do que aconteceu, mas a saudação do começo da aula diz tudo para mim: ele está envergonhado e arrependido do que aconteceu e com certeza vai ter mais cuidado com todos. Eu não sinto ressentimento, mas sinto vergonha pela forma como eu reagi. Nós dois temos recebido lições muito importantes, e isso nos faz evoluir. Damos aperto de mão, fazemos reverência e continuamos com o próximo parceiro.
E você, com quantos “Lucas” já se deparou nos treinos? Conta aqui pra gente 🙂 Oss