Jiu-Jitsu contra a cultura do estupro – Parte 2: Consciência e (falta de) cultura

Uma crítica absolutamente justa que algumas leitoras me fizeram é que devo aprofundar mais em alguns assuntos, mesmo com a limitação de espaço. Por esta razão, farei deste tema uma série de até três textos. Pretendo, assim, abordar melhor algumas questões.

Recentemente, li e fiquei chocado com a estatística de que 37% (pouco mais que um terço) dos entrevistados de uma pesquisa concordam com a afirmação “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. De forma alarmante, esse número chega a 42% no universo masculino e, pior ainda, 30% entende que “mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Qual a origem destes números? Naturalmente, não poderei fazer uma análise histórica aprofundada sobre a questão, mas pretendo, analisar a situação sociocultural atual.

Inicio com o pressuposto de que nossa sociedade é machista e que não há igualdade/justiça de gêneros. Não é raro, exemplifico, vermos vídeos de crianças (meninos) sendo estimuladas, por exemplo, a crerem que mulheres gostam de dinheiro. Cuidado! Os piores ensinamentos culturais são transmitidos como “brincadeiras e piadas” e justificados com “era apenas uma brincadeira/piada”. Poulain de la Barre, um feminista pouco conhecido, escreveu no século XVII: “Tudo que os homens escrevem sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte”. Muito mais suspeito é, portanto, o que os homens ensinam e transmitem sobre as mulheres a sua descendência masculina. A conscientização de que a brincadeira é um grande mal transmissor desta situação é necessária para que se combata esta cultura social maligna em que vivemos. Como homem é difícil tentar compreender o “outro lado”, pois não sou parte (fisicamente) mais frágil na média e nem a parte psicologicamente e socialmente oprimida. Entretanto, o trabalho de conscientização e concretização de uma nova cultura de igualdade e justiça deve ir além do teórico, além do papel, além do desejo… São necessárias ações práticas.

Academias de jiu-jitsu têm, sabidamente, muito mais homens do que mulheres. Apesar da discrepância, podemos ver isso como uma oportunidade de se trabalhar contra a falta de cultura em que nossa sociedade vive. Podemos utilizar tais espaços para conscientização masculina. Mulheres não são objetos, mas donas de seus corpos, com vontades e desejos que devem ser (e muito) respeitados.

Simone de Beauvoir escreveu que “a mulher sempre foi, se não a escrava do homem, ao menos sua vassala”. Uma análise triste, porém precisa, de uma realidade atemporal. Sempre foi e é assim até os dias de hoje; apesar de estarmos em um processo de mudança. Infelizmente, um processo muito lento. Se dentro de um esporte que se diz aberto para todos e para as famílias ainda se vê casos de agressões (físicas e psicológicas) contra as mulheres, então é necessário parar e repensar. Repensar o papel que nossas academias têm desempenhado nessa transformação em nível individual e em nível social. Basta lembrar das diferenças de estímulo e premiações para homens e para mulheres e já teremos uma ideia da questão em voga.

É extremamente importante ensinar que as mulheres devem (e precisam) aprender defesa pessoal, em especial o jiu-jitsu, que é na opinião deste colunista a arte marcial mais eficiente para este fim. Mas, antes disso, é ainda mais fundamental que se ensine aos homens que não podem, não devem e, principalmente, não têm o direito de agredir a nenhuma mulher. Não importa se estes homens entendem que as roupas ou comportamento das mulheres são provocativos, inapropriados ou não. Enfatizando-se, digo novamente que não interessa a opinião dos homens em relação ao comportamento ou vestimenta das mulheres. Um comportamento respeitoso e educado é obrigação e não favor.

Uma maneira que você pode contribuir para a melhoria comportamental neste sentido é conversando com as pessoas responsáveis por sua academia e iniciando um trabalho de conscientização e mudança comportamental. Lembre-se que nem sempre as pessoas têm comportamentos inadequados por serem más, mas sim por terem durante toda a vida vivenciado esta cultura sem a oportunidade de questioná-la e analisar suas implicações éticas e morais. É possível mudar e, com cada um colaborando, as academias de jiu-jitsu podem e devem ser berços desta transformação. Se antes elas eram vistas como ambientes “para homens”, que a nova imagem das academias de jiu-jitsu seja construída pensando que são de “homens que cuidam e respeitam as mulheres”; bem como um ambiente universal e aberto a quem quiser. Um trabalho de formiguinha em que cada um é fundamental.

Por último, mais uma vez invoco Simone de Beauvoir que disse: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Desta forma, me permito um parafraseamento poético livre dizendo: “Ninguém nasce homem de valor, mas torna-se homem de valor”. E para não ficar no imaginário interpretativo eu mesmo vou dizer o que penso e quis expressar com a paráfrase: homem de valor é o que vê e trata as mulheres com igualdade, justiça, liberdade, respeito e dignidade. Portanto, é necessário mergulhar neste processo e se educar para se tornar um homem de valor. Respeito é a base, e a dignidade, a justiça, a igualdade e a liberdade são frutos de um respeito autêntico exercido por homens de valor.

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