Olha, ninguém aqui se lembra, mas já nascemos fazendo “guardinha”. Afinal, a posição, eterna salva-vidas dos lutadores de Jiu-Jitsu nos ringues, já estava consagrada há tempos. Quem olhar a obra-prima “Riña en el Mesón del Gallo”, tela de um dos melhores pintores de todos os tempos, Francisco Goya, pode observar a seguinte cena: uma briga de bar, espanhóis dando pauladas para todos os lados. No centro da tela, um cara em posição superior parece… estar passando a guarda! Só eu vejo isso, ou vocês também? O quadro de Goya, pintado em 1777, está hoje no Museu do Prado, em Madri.
Dizem por aí também que pigmeus africanos já valorizavam, no combate corpo-a-corpo, a técnica de manter as pernas entre o feroz agressor e o seu nariz. Espernear, portanto, sempre foi a salvação.
Foi o Jiu-Jitsu, no entanto, que melhor explorou e valorizou a guarda como a arte de se defender no chão e equalizar os pesos do agressor e do agredido. Mais do que o judô, sambo ou qualquer outra.
Mas, e os japoneses? Não foram eles que criaram a técnica? Não existem escolas até hoje que priorizam a parte de grappling no judô, parte esta chamada por eles de newaza? Sim, é verdade. Olhem só como o carioca Flávio Canto, o chão mais ofensivo do judô mundial, vê a questão:
“Acho o Jiu-Jitsu brasileiro excepcional. Sua grande contribuição para o newaza mundial e para o jogo de guarda, foi aliar uma quantidade tão grande de praticantes com a criatividade do brasileiro. Daí surgiu toda a gama de posições e situações inéditas, consagradas hoje”, diz o medalhista olímpico em Atenas-2004. “Guarda-aranha, por exemplo, eu nunca vi antes em lugar nenhum, é coisa do Jiu-Jitsu brasileiro. Outro aspecto positivo da arte é cair fazendo guarda e virando-se sempre de frente para o adversário, afinal ninguém tem olho na nuca. É este reflexo que falta a muitos judocas e wrestlers.”
De pedra em pedra, a muralha
Quando aportou no Brasil no início do século XX, o japonês Conde Koma não trouxe apenas um eficaz jogo de pernas, aprendido com afinco pelo jovem Carlos Gracie. Passou também lições orientais de disciplina, saúde e honra que permeariam a história da família para sempre. Buscando espalhar a arte que lhe dava tantos benefícios, Carlos começou a fazer história – e a escrever também a história da guarda. “Ele foi o primeiro ocidental a superar um campeão oriental, em 1924, numa época em que os japoneses achavam os ocidentais uns degenerados”, lembra o filho Rilion Gracie, considerado a melhor guarda da família. Foi contra Geo Omori, quando o grande mestre puxou para a guarda e aplicou um tomoe-nage, o popular “balão”, e caiu montado. O Gracie então estalou o braço do valente japonês, que mandou a luta seguir com as veias saltadas.
Mais tarde, em 1951, quando o irmão Helio Gracie fechou a guarda e, com seus pulsos (fortes até hoje), pôs o exímio judoca Jukio Kato para dormir, num estrangulamento de gola, a arte da guarda estava consagrada. E pronta para continuar sendo desenvolvida, graças à criatividade e suor de outros Gracies, Barretos, Hemetérios, Machados, Vigios, Alves, Virgílios, Gomes, Behrings, Duartes, Penhas, Jucás, Castello Brancos, Góes, Vieiras, Santos e Silvas. E até um Stambowsky. Cada novo fiel adepto da guarda ia dando sua contribuição, depositando uma pedra aqui, cimentando ali, e ajudando a erguer a reputação da guarda como essência do Jiu-Jitsu.
A metáfora de construção, na verdade, não é gratuita. Para Carlos Gracie Jr., a posição de guarda é como a fortaleza que dá segurança ao lutador. Você não perde necessariamente a guerra se não tem uma muralha sólida, mas que ajuda, ajuda. Inclusive para, do alto dela, postar seu arsenal ofensivo: “A guarda é a fortaleza do lutador de Jiu-Jitsu. Você escolhe se prefere lutar com ela aberta ou fechada”, ensina.
“Numa guerra, o mais inteligente é o quê?”, indaga Carlinhos. “Começar a guerra de portões fechados. Na guarda fechada, você está guerreando com o inimigo fora dos seus muros. Se o cara abre sua guarda, ele derruba sua porta levadiça. É a posição limítrofe, que obviamente exige nova estratégia. Se ele invadir, ou seja, passar sua guarda e chegar do lado, a batalha começa a se desenrolar dentro dos seus domínios, com você muito mais exposto. Complicou, vai exigir o triplo de força para você se defender, mas não quer dizer que não haja saída”.
Acredito que a partir daqui, seu jogo de guarda pode ganhar asas. Como o “Carcará” Bráulio Estima revelou uma vez: “Quando eu ataco, faço de trás para a frente. Primeiro, bloqueio a defesa do adversário para o meu ataque, e só depois busco o golpe fatal. São ajustes mínimos. A primeira coisa a fazer é quebrar a postura do adversário. Aí trabalho e tento anular sua defesa, antes mesmo de atacar. Assim, se eu ataco um triângulo mas o cara defende, acaba sobrando um braço. Hoje, o bom guardeiro não é aquele que defende a melhor passagem do adversário, e sim aquele que não deixa o adversário começar a aplicar sua melhor passagem. Não se pode deixá-lo desenvolver seu melhor jogo. É o famoso ‘passo à frente’”.
Para você chegar a um estágio avançado, porém, jamais se esqueça de construir uma base sólida, para sua muralha não ruir: “Quem quer ter uma boa guarda deve aprender e treinar todas as etapas da guarda. Primeiro fechada, com o adversário de joelhos; depois com o mesmo em pé; depois a guarda clássica com pé na virilha e suas variações. Insista no básico, que depois seu biotipo e seu tipo de jogo vão certamente definir o que é ideal para você.” Pronto, agora você está pronto para espernear – desta vez, com toda a classe.
E você, como está a sua muralha? Bons treinos a todos. Oss!