Quem inicia a prática da nossa arte suave hoje, pode observar uma preocupação significante do Sensei quanto à conduta de seus alunos fora dos tatames. Alguns determinam o cuidado com confusões, evitar entrar em atritos. Tudo em prol da integridade física do aluno e da exposição do Jiu-jitsu a situações violentas.
Causaria estranhamento se eu dissesse que nem sempre foi assim, houveram tempos difíceis e de uma exposição pública desagradável de nossa arte. Devemos deixar de início o esclarecimento que este texto não vai tratar de culpar o Jiu-jitsu por estes acontecimentos, ora, um fenômeno humano recheado de subjetividades particulares dos seus praticantes, vivencias e histórias não poderia assinar o atestado de culpa dos erros de tanta gente. Vamos falar de como alguns fenômenos sociais participaram diretamente na desconstrução da não violência que hoje é cultuada no Jiu-jitsu, em particular os Pitboys.
Antes, gostaria de chamar a atenção para o corpo. Desde o século XX o corpo ganhou conotações importantes em nossa sociedade. A fotografia e o espelho na França deste período chamaram a atenção para uma parte do indivíduo que não possuía tanta importava. Logo a indústria da moda percebeu este potencial. Hoje, o corpo é uma obsessão que todos os dias a mídia nos impõe como meta. Em particular, cada atividade esportiva carrega características singulares causadas por esforços repetitivos. A musculação causa a hipertrofia dos membros, o futebol deixa jogadores com os músculos do quadril e pernas definidos, e o Jiu-jitsu?
O praticante de Jiu-jitsu é acostumado viver com a dor e o desconforto de treinos pesados, de lesões nos dedos da mão e dos pés, articulações lesionadas… E a velha orelha de “couve flor”, orelhas deformadas pelo atrito no tatame ou no kimono. Para alguns, este tipo de deformação torna-se uma característica de que ele se entregou totalmente ao Jiu-jitsu, que seu nível de resistência e conhecimento é superior. Para os que não conhecem a arte suave, é um sinal de que: “é melhor ficar longe deste cara”. No conhecimento popular este traço físico atingiu status de respeito.
A mensagem tácita da marca corporal do lutador não se completa sem um dado de ambiguidade; por um lado, atua no sentido de impor respeito ou mesmo temor, por outro, serve como o primeiro e mais imediato sinal que dispara o gatilho do estigma, do estereótipo que acompanha os praticantes dessa arte marcial. Ao reconhecer uma “orelha de couve-flor”, dificilmente alguém imaginará que se trata de um sujeito pacato, um atleta que restringe o uso de sua técnica somente ao tatame. Mais provável que pense estar diante de um “pitboy” encrenqueiro. (TEIXEIRA, 2010).
O Rio de Janeiro da década de 90 vivia e presenciava toda violência causada pelo poder paralelo e pelas milícias. Vivia também um momento no cinema nacional que retratava muito destas realidades que, subjetivamente ganha interpretações no consciente de cada indivíduo, (um acha que o capitão nascimento é vilão, outro acha herói). Vivia também um momento em que a “cultura da favela” ganhava os olhares da classe média alta carioca. (Os artistas do funk)
Embora existisse uma situação de preocupação como uma violência crescente (tráfico de drogas e confrontos com a polícia) a aproximação de alguns indivíduos ao Jiu-jitsu, (indivíduos de classe alta fluminense em especial), não se deu com o propósito de se defender, e sim como identificação com os elementos que constituíam o poder paralelo. Como não poderia empunhar uma arma no asfalto, o elemento de imposição e reconhecimento no grupo se tornou o Jiu-jitsu, que podemos considerar também como uma arma, e o que ficava mais visível destes indivíduos era a orelha de “Couve” que simplesmente inibia qualquer pessoa de se envolver em qualquer confusão com aqueles “caras”. Claro que não podemos esquecer que houve também a influência da cultura propagada neste mesmo período pelos Gracie, que desafiavam lutadores de outras artes com o propósito de provar a eficiência do BJJ.
O termo Pitboy, em uma referência ao animal Pitbull (apelido do cão raça American Pit Bull Terrier) que possui características físicas a um lutador por ser musculoso, surgiu na mídia quando estes cidadãos da elite “bagunçavam” a noite fluminense, causando prejuízos aos donos de casas noturnas, bares e festas.
Quando e como você começou a trabalhar de segurança?
[Dono da empresa]: Fui segurança de porta de boate por muito tempo. Comecei com vinte e dois anos, trabalhei até os trinta. Tô com quarenta e Quatro, depois que virei dono da empresa, parei.
E como era naquela época?
Sempre teve turma. Tinha a turma da [rua] Toneleiros, o pessoal Do jiu-jítsu dos Gracie arrumavam confusão, sempre tem esses playbozinhos, filhinho de papai. Hoje o pessoal chama de “pitboy”, mas isso sempre teve. […]Vou te falar a verdade: nos anos oitenta a segurança batia muito mais do que bate hoje. Ah, na minha época, você batia mais. Hoje não. Hoje tem direitos Humanos, bé bé bé. […] Se fosse nos anos oitenta, os “pitboys” não iam tirar essa onda toda. Os seguranças batiam muito mais.
Trecho de uma entrevista para o artigo, Sobre Lutadores e “Pitboys”: A experiência da violência entre jovens de classe média e alta do Rio de Janeiro. Antônio Claudio Engelke Menezes Teixeira, 2010.
Houve uma falta de interpretação da mídia aos fatos, pois a mesma tratava de relacionar os acontecimentos a todos os praticantes de Jiu-Jitsu. O que nos rendeu uma imagem de esporte violento e de “Arruaceiros”, e esta estigma social nos persegue até hoje, basta perceber que qualquer fato isolado ocorrido com um praticante logo é relacionado a este passado sombrio pela mídia. Acredito que esta estigma também interfira na aquisição de patrocínios para os atletas.
Podemos acrescentar que neste período não existia uma quantidade considerável de competições de Jiu-jitsu, nem de eventos internacionais.
O que retiramos destes fatos históricos é que o fenômeno Pitboy teve sua origem numa atitude de afirmação social ou do grupo de uma classe social em particular: “… a motivação fundamental à atitude guerreira é o desejo de glória, de reconhecimento (Pierre Clastres Apud Teixeira 2010, Pág.9). Pautado num momento em que a sociedade encarava uma explosão de violência velada pelo estado.
As interpretações serão sempre direcionadas pela mídia de uma forma generalizada dos fatos, sem apurá-los em sua essência. Por outro lado, cabe também aos praticantes, que imagem estaremos passando para a sociedade do nosso Jiu-jitsu.
Cabe também atentar ao fortalecimento do diálogo com nossos alunos a respeito disso e que não podemos voltar a estes tempos sombrios.
Referências
AWI, Felipe. Filho teu não foge à luta: Como os lutadores brasileiros transformaram o MMA em um fenômeno mundial. Rio de Janeiro : Intrínseca, 2012.
CARDOSO, Bruno V. Briga e castigo: sobre pitboys e canais de fofoca em um sistema acusatório 2005 (Dissertação de Mestrado/UFRJ. In: http://www.ifcs.ufrj.br/~ppgsa/mestrado/Texto_completo_225.prn.pdf).
PEREIRA, É. A. De ‘capitães’ e ‘pitboys’: cartografias da marginalidade nas obras ‘Capitães da Areia’, do brasileiro Jorge Amado, e ‘Marginais’, do cabo-verdiano Evel Rocha. Via Atlântica (USP), v. 22, p. 55-69, 2012.
TEIXEIRA, A. C. E. M. Sobre lutadores e “pitboys”: a experiência da violência entre jovens de classe média e alta do Rio de Janeiro. Cadernos de Segurança Pública, v. 1, p. 4-13, 2010.
http://tudosobrecachorros.com.br/2013/02/american-pitbull-terrier.html