Se você acompanha o jiu-jitsu feminino, dificilmente você não conhece a Mayara Munhos, do blog ESPNw. Mayara, além de blogueira, é faixa roxa da equipe Atos (SP), com os professores Douglas e Paulo Ono. Além disso, ela também participou por um tempo como colunista aqui no BJJ Girls Mag. Seus textos chamam atenção não apenas por se relacionarem ao jiu-jitsu de forma geral, mas porque realmente problematizam a existência e permanência das mulheres no tatame, parte de uma luta hercúlea travada todos os dias contra inúmeros inimigos.
Hoje, tive o prazer de falar com essa grande mulher que vem trilhando um caminho excepcional no meio do jiu-jitsu feminino. Foi uma honra falar com ela e saber um pouco das suas opiniões.
Você trabalha com esportes e está ativamente envolvida no assunto, como você acha que isso reflete na sua vida hoje?
Reflete em tudo, desde a minha preocupação com a saúde, até na questão psicológica (que, pra mim, é a parte mais importante). Eu tenho um grande problema de achar que eu não sou capaz e vejo pessoas alcançando coisas na vida que acho que não conseguiria alcançar. Pegar a faixa azul era meu objetivo desde que entrei no jiu-jitsu, porque era o que eu tinha de referência lá em 2006 (não tinha nenhuma mulher além da faixa azul treinando comigo). Quando peguei a azul, achei que tinha chegado no meu máximo. Mas quando vi, estava recebendo a roxa e aí eu parei para analisar que é possível sim. Hoje vejo muitas mulheres do meu lado que conquistaram a faixa preta, um horário de aula, uma academia própria… E isso completamente inimaginável para mim. Então isso é o que mais levo para a vida. Uma vez, meu ex-professor, Fabio, me disse, logo que peguei a faixa azul (e estava desesperada): “Mayara, ninguém recebe uma cruz maior do que se pode carregar”. E eu realmente levo isso comigo com muito carinho.
Quem te acompanha, sabe que você costuma participar de competições de jiu-jitsu sempre que possível. Tendo estado envolvida com jiu-jitsu há tanto tempo, você consegue observar um real aumento da participação feminina nos eventos de competição?
O aumento da participação feminina em campeonatos é absurda desde que comecei a treinar. Eu participei do primeiro Sul Americano da CBJJE em 2007. Nem existia a minha categoria (Infanto Juvenil B) e eu tive que lutar uma acima, na Juvenil, e ainda assim, só tinha uma competidora além de mim, ou seja, final direto. Fiquei seis anos afastada do jiu-jitsu, e quando voltei me deparei com um número absurdo de mulheres e fiquei pensando onde eu estive esse tempo todo, hahaha, porque realmente mudou muito. Mas ao mesmo tempo, percebo que quanto maior a faixa, menos inscritas em competições, e é uma coisa que não acontece na categoria masculina. O Paulista, por exemplo, que é um campeonato que gosto de lutar, na faixa azul já peguei chave com doze meninas. Nesse ano, cheguei a ver minha chave de roxa e tinham duas, três… Mas acho que é questão de tempo. Se vi isso mudar em dez anos, creio que em vinte cresça mais, em trinta ainda mais e por aí vai.
Recentemente, você teve a oportunidade de participar de uma roda de conversa com ninguém menos do que Cris Cyborg. Como foi essa experiência? Você acha que o MMA tem abertura e destaque maiores para as mulheres do que o jiu-jitsu?
Foi uma experiência incrível! Ela é uma mulher muito forte e guerreira, além de uma pessoa incrível por trás das câmeras. Me senti lisonjeada pelo convite, e motivada a continuar. E em relação ao MMA, acho que no geral ele tem muito mais abertura para os atletas. Mas isso tudo é dinheiro, né? O MMA tem muito mais dinheiro envolvido, muito mais mídia, publicidade… E acho que é isso que o torna um esporte mais forte e profissional do que o jiu-jitsu, principalmente por conta dos eventos que são televisionados, porque TV tem todo aquele glamour. A mídia fica em cima mesmo, porque da audiência. E também acho que é por isso que estamos “perdendo” atletas do jiu-jitsu para o MMA, tipo a Gabi Garcia, Mackenzie, Nicolini… Até o Rodolfo Vieira, Bruno Malfacine, que lutaram no último final de semana e são pessoas que gostamos muito de ver nos tatames. O que temos que tirar de proveito disso é que, indiretamente, é uma forma de divulgar o jiu-jitsu também. Eu acho maravilhoso que a galera pire nas finalizações, não só nos nocautes, e isso é jiu-jitsu! Mas para chegarmos ao patamar do MMA, acho que vai demorar demais, se é que isso vai acontecer. Pra nós é uma realidade muito distante.
Hoje você tem um blog que, além de tratar de jiu-jitsu propriamente dito, é também um espaço de discussão política sobre o tema e demonstra a forma como as mulheres vêm ocupando esse espaço. Como surgiu a ideia do blog e como ele se tornou esse espaço de discussão além dos tatames?
Eu sempre quis ter um espaço para falar sobre isso, porque sempre gostei de escrever e gravar vídeos. Também ficava pensando em que tipo de assuntos eu podia tratar, já que não daria pra ficar falando de mim mesma e, mais que isso, eu não teria um nome forte por trás para me dar credibilidade e fazer chegar a algum lugar. Então, tendo a ESPN como base, foi mais fácil me consolidar, porque eu não era, na época, a faixa azul que falava de jiu-jitsu no blog. Eu era a pessoa que escrevia para a ESPN, independente de graduação e aí acho que isso me deu um pouco de credibilidade. Ele foi se tornando naturalmente um espaço de discussão, porque os meninos que treinam comigo brincam que eu gosto de mexer com assuntos “polêmicos”, e polêmica sempre gera discussão. Mas a minha intenção não é polemizar e criar meu nome em cima disso, mas gerar reflexão sobre assuntos que dificilmente você vê serem tratados. Tipo, eu nunca tinha visto o assédio ser tratado de forma aberta e atrelado ao jiu-jitsu. Acho uma pena, lógico, termos que atrelar. Mas acontece e acho que devemos falar, porque isso gera reflexão. Assim como acontece com o machismo. Existe demais no tatame, é um esporte majoritariamente masculino então é inevitável que exista, mas tenho certeza que faz as pessoas refletirem, no amor ou na dor, né. Hahaha porque eu recebo muita pancada na cabeça, mas recebo muitas coisas positivas também, amigos meus que falaram “poxa, realmente, eu nunca percebi que tinha feito isso e já fiz, vou prestar mais atenção”. Isso aí é compensador. É um processo de desconstrução, então eu entendo que algumas pessoas demorem a enxergar que existe. Mas só de elas pensarem sobre, já é um avanço.
Você já expressou através de textos, e também de vídeos, as formas de injúrias que você sofre por falar das injustiças no meio esportivo. Em algum momento você tem (ou teve) realmente medo desses ataques?
Na verdade, eu tenho medo do ser humano, no geral, porque as pessoas são muito loucas e você nunca sabe o que pode acontecer, mas eu não sei se alguém faria tipo uma perseguição para me atacar, hahaha seria muita perda de tempo, mas na internet é complicado, acontece demais. Depois que fiz o texto “O machismo diário que a gente não percebe”, parece que foi um reboliço. Já era a segunda vez que eu intitulava um texto com “machismo”, mas acho que dessa vez, como foi um tempo depois de ter falado sobre assédio e o blog ter dado um boom, por isso atingiu mais gente, foi para a capa da UOL e aí ferrou tudo. Então eu sofri diversos ataques pela internet, de pessoas que duvidavam de mim como atleta, ou então que meu professor me deu graduação por dó, sem nem saberem de onde eu vim e nem que faixa eu era. Eu discuti com muita gente e por isso eu fiz o vídeo em seguida, mas em nenhum momento queria provar algo para alguém, sabe? Em nenhum momento falei da minha rotina de treino ou enumerei os motivos pelos quais posso ter sido graduada, hahaha porque esse não é o foco e também porque não vai mudar nada na vida de ninguém. O foco o tempo todo foi fazer com que as pessoas entendessem que existe machismo sim, que não é uma coisa do jiu-jitsu, mas que vem de fora, que precisamos falar disso e que, se não quiser ajudar ou acreditar que existe, é só ficar no seu canto e não encher o saco. As pessoas são muito fortes por trás de computador e celular, sabe? Então elas falam sem dó. Mas isso pra mim não é nada, muita gente passa por coisa muito pior. Você tem que se blindar. Se eu vivesse com medo ou eu desistiria ou só falaria da parte boa do esporte, que é mais fácil e as pessoas não questionam.
Quem acompanhou sua série sobre assédio nos tatames certamente ficou impressionado com a quantidade de relatos de abusos. Como foi, para você, falar sobre um assunto tão repulsivo? Você acredita que abrir um espaço para essa discussão possa ter, de fato, representado uma mudança de atitudes em todos os níveis?
Na verdade, foi horrível. Eu estava falando com um amigo um dia sobre assédio nos tatames e ele me mandou uma conversa de uma garota com um professor, com o cara falando umas coisas nojentas e daí eu falei: “cara, vou falar sobre assédio, isso é escroto e as pessoas precisam saber que existe”. Bom, daí eu ia escrever e só. Mas ia parecer que eu sofri um assédio, fiquei com raiva e decidir fazer um textão. Então um dia estava pensando em como poderia abordar esse assunto e tive a ideia de montar uma pesquisa e disparar para geral, com ajuda de páginas de jiu-jitsu feminino. Tive 260 respostas e eu nem imaginava ter tudo isso. Daí o negócio ficou sério e eu não sabia o que fazer, porque os depoimentos eram horríveis e eu tinha que ler todos. Me doía bastante, porque eu me colocava na situação de cada uma. Eu chorei várias vezes antes de dormir, nunca contei isso pra ninguém, mas é que é horrível ver que tem gente escrota em todo lugar, até onde eu mais amo estar e onde sei que é pregado toda forma de respeito. Então esse lance atrasou muito a publicação da matéria, porque eu não tinha estômago pra ler. Eu comecei a escrever e estava achando ruim demais, mas já tinha começado e não podia desistir, então fui até o fim e a repercussão foi absurda. Entendo as pessoas que criticaram, inclusive as mulheres, porque vai muito do meio em que somos criados. Mas eu consegui provar com dados de que isso existe e que precisamos mudar. E que, principalmente, os professores precisam ficar de olho aberto porque ninguém consegue controlar matrícula na academia, né? Vem gente de todo canto. Acho que faz parte de cada um ficar esperto com isso, e também dos amigos de tatame. Mas enfim, eu acho que pode ter representado uma mudança sim, não digo que eu acho que tenha acabado, porque não acabou e muito menos graças a mim. Mas como eu já falei lá antes, se gerou uma reflexão, já é meio caminho andado e eu tenho certeza que gerou. Mesmo as críticas, se incomodaram tem um motivo, né?
Quais foram as repercussões dessa série? Você considera que ela foi um pontapé inicial para que você levantasse abertamente a bandeira de defesa das mulheres no portal?
Embora eu tenha dito que foi horrível, foi compensador porque muita gente veio me procurar. Muitas mulheres se encorajaram para contar suas histórias e confiaram em mim, me senti um pouco psicóloga e ao mesmo tempo impotente, porque não podia fazer nada, só ouvir e oferecer meu ombro mesmo, hahaha. E muitos homens repudiaram e se envergonharam por outros homens, e inclusive se sentiram mal por alguns comentários “sem malícia” que eles mesmos fizeram. A repercussão foi maior que eu esperava. Era para ser um texto. Quando parei para planejar com a pesquisa, achei que seriam quatro e quando sentei mesmo para fazer, se transformou em cinco porque veio ideia de muita gente, por exemplo, o texto do assédio moral não estava nos planos e uma amiga de treino me deu a ideia de escrever, e tiveram muitos relatos mesmo, e no último, minha sogra, que é advogada, me deu a ideia de falarmos que a justiça precisa ser acionada e que existem leis e medidas cabíveis para esse tipo de situação. Essa série do assédio mudou minha vida e a vida do blog. Fez com que eu abrisse os olhos para muitas coisas e que passasse a defender ainda mais a luta da mulher no esporte, de verdade mesmo, mudou minha cabeça. E eu vou defender até o fim, mesmo que me irritem, rs.
Certamente muitas meninas se inspiram em você, porque você é uma mulher de peso, não apenas por seu desempenho no jiu-jitsu, mas pelo que representa na luta pelos direitos das mulheres em ocuparem um espaço ainda majoritariamente masculino. Como você se sente sabendo da sua relevância hoje e do seu papel enquanto incentivadora do esporte?
Eu acho que eu sou só uma gotinha no meio do oceano, rs. Tem tanta mulher grande e com história de vida maravilhosa que com certeza influencia outras mulheres e me influenciam também. No começo, eu me sentia muito feliz porque minhas amigas reconheciam meu trabalho. Depois, os amigos começaram a reconhecer. E de repente eu recebo mensagens de gente que eu nunca vi me agradecendo por falar sobre as coisas meio malucas que eu falo. Sei lá, eu sinceramente nunca parei para pensar nisso rs. Eu faço porque me satisfaz e porque, caso eu não fizesse, gostaria de ver alguém fazendo para me sentir representada. Então se de certa forma eu represento uma pequena parcela das mulheres que não conseguem se enxergar treinando jiu-jitsu por algum motivo, eu fico feliz. É uma prova de que meu trabalho está dando certo. Eu fico realmente feliz quando me dizem que eu inspiro ou que estão treinando por minha influencia. Tipo, você vive sua vida normal e acha que não está fazendo a diferença, mas quando vem alguém e te fala uma coisa dessa, você fica até meio tipo “gente, tô com medo, não posso fazer nada errado porque tem gente me assistindo”, rs. Mas é bem bacana, fico feliz mesmo e agradeço a confiança.
Muitas meninas ainda desistem do mundo das artes marciais de forma geral por medo ou por acharem que aquele não é um ambiente para elas. Se uma garota que estivesse lendo este texto estivesse prestes a desistir, o que você diria para ela?
Queria dizer para quem quer desistir e para quem quer começar, pode?
Para quem quer desistir: eu diria uma coisa clichê que é “quem quer consegue”. Mas eu sei que essa frase é muito mais fácil na teoria, né. A vida tenta tirar da gente nossas melhores coisas. Quando alguém me pergunta o motivo de eu treinar jiu-jitsu e não dar uma pausa, eu digo que é porque é a única coisa que eu faço por escolha. A vida é cheia de regras e treinar jiu-jitsu não é uma regra, é uma escolha. Então para mim não faria sentido deixar de lado a única coisa que escolhi. Portanto, se alguém pensar em desistir por algum caso do tipo assédio ou machismo no tatame, ou então porque não tem muitas mulheres treinando, ou porque se acha incapaz, eu diria que deve pensar que foi uma escolha. A escolha pode ser anulada a qualquer momento, porque não é um contrato e nem uma obrigação, mas se está te fazendo bem e feliz, não tem motivos para desistir. E se está te fazendo mal, dê uma olhadinha ao seu redor e veja se o problema não é o ambiente, porque muitas vezes estamos num ambiente pesado cheio de gente pesada. Então acho que uma boa maneira de tirar a prova disso é, caso aconteça um problema, seja pessoal ou de equipe, você deve ir até seu professor se abrir. Se ele não te ouvir, você está no lugar errado.
E para quem quer começar: aproveitando o gancho de ‘lugar para treinar’, equipe é fundamental e estar numa boa equipe depende das pessoas que estão nela. Isso vem de cima para baixo. Se seu professor é um cara que te ouve, que conversa com você, que está preocupado em receber seus problemas e te ajudar a resolver, então provavelmente os alunos serão assim também. Meus professores são meu espelho, eu os admiro demais. Mudei de equipe recentemente e parece que eu nasci nela. Se você não vê seu professor como alguém em quem se inspirar, tem alguma coisa errada, porque é no patamar de um professor que todo mundo quer chegar. Não necessariamente de dar aula, porque nem todo mundo quer isso. Mas estar no tatame é muito mais do que colocar seu kimono e amarrar sua faixa. Suas escolhas fora dele refletem quem você vai ser lá dentro. Então antes de procurar uma equipe, acho importante procurar referências, ir atrás de alguém que conheça… E chegar lá, conversar, conhecer mesmo. Daí é consequência. Se seu professor se mostra uma pessoa boa fora do tatame, consequentemente ele será tão bom quanto lá dentro. Então é uma coisa que você deve olhar que vai beeem além de graduação. Faixa preta é só um detalhe. Não é só porque o cara é faixa preta que ele é a melhor pessoa do mundo, por isso é importante conhecer a pessoa e não só o atleta/professor.
E não se desencorajem pelas poucas mulheres. Se nenhuma nunca começar, nunca vai ter ninguém. Então o fato de uma estar no tatame, é um chamariz para as outras. =)
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O BJJ Girls Mag e eu agradecemos imensamente à Mayara Munhos tanto pelo tempo dedicado a esta entrevista quanto pelo que ela faz diariamente pelo jiu-jitsu feminino. Nós precisamos que pessoas com espaço possam falar a fim de firmar nosso pé e permanecermos nesse lugar que também é nosso. Quando eu penso nisso que ela disse e que muitas pessoas também pensam, eu lembro de uma frase (atribuída a Jacob Riis) que me move muito e que diz o seguinte: “Quando nada parece dar certo, vou ver o cortador de pedras martelando sua rocha talvez 100 vezes, sem que uma única rachadura apareça. Mas na centésima primeira martelada a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela que conseguiu isso, mas todas as que vieram antes“.
Não existe trabalho de formiguinha em vão. Cada uma vale muito!
Oss.