No último dia 13, o Buzzfeed BR fez um post incrível que chamou muito a nossa atenção: uma academia do Rio de Janeiro que criou a possibilidade de um treino de defesa pessoal, principalmente o Krav-magá, com acolhimento de pessoas da comunidade LGBT. Assim surgiu o Piranhas Team, uma iniciativa que dá oportunidade às pessoas incluídas nessas minorias de se defenderem e cuidarem de suas próprias integridades física, além, é claro, de praticar um esporte.
A partir desse contato e do reconhecimento do tamanho da importância de um projeto desse tipo, procurei a página e entrei em contato para entender um pouco mais sobre o que eles fazem. Ainda que nosso foco seja o jiu-jitsu praticado por mulheres, nós vimos nessa iniciativa uma porta aberta a discussões que envolvem todo o tipo de opressões.
Tive a honra de conversar com o Halisson Paes sobre esse projeto incrível. A breve entrevista, que me emocionou muitíssimo, segue abaixo. Foi um prazer enorme falar sobre esses problemas com alguém tão esclarecido, afinal é sempre importante e necessário saber quem caminha ao nosso lado.
BJJ GIRLS MAG: Como surgiu a preocupação com a comunidade LGBT e a ideia de criar um treino voltado para elxs?
Halisson Paes: O Piranhas surgiu da reunião de pessoas que já estavam ligadas à militância LGBT e participavam de outros projetos, como o “Prepara Nem” e a “Casa Nem”. A convivência nestes projetos fez perceber vários problemas enfrentados por LGBTs em especial por pessoas Trans, que sem dúvida são as maiores vítimas da violência. Nenhuma das pessoas envolvidas na criação desta turma tinha algum envolvimento prévio com artes-marciais, lutas ou etc… Mas, conhecíamos essa demanda por parte da comunidade LGBT e do movimento Feminista e entramos em contato com o CT Tori, que foi receptivo à ideia de ter uma turma voltada a mulheres e LGBTs. Não há exatamente um treino voltado para LGBTs. A academia ofereceu a possibilidade de fazermos qualquer uma das modalidades oferecidas, mas, depois de experimentarmos algumas outras lutas, identificamos no Krav-magá algo mais próximo de nossa demanda, que é de defesa pessoal.
BGM: Qual é a principal queixa para as pessoas que procuram os treinamentos?
HP: Bem, acreditamos que duas questões principais têm trazido as pessoas para essa turma: a primeira é a preocupação real com violências contra LGBts e a segunda é a falta de lugares em que estas pessoas se sintam à vontade para treinar sem sofrer nenhum tipo de discriminação. Isto porque o ambiente de academias de artes marciais pode ser um ambiente bastante machista, e LGBTs não se sentiriam bem em espaços nos quais pudessem ser objeto de discriminação, piadas, olhares preconceituosos e coisas assim. Muitas pessoas afirmam que sempre tiveram a vontade de fazer alguma luta, mas nunca o fizeram por receio destes espaços.
BGM: Recentemente, o lutador de MMA José Aldo fez declarações bastante polêmicas a respeito do treino com gays. Qual é a posição de vocês a respeito desse tipo de comportamento?
HP: Bem, sequer conhecíamos essa declaração, mas diante de sua pergunta, vi que ele declarou que gays não seriam bem-vindos em seus treinos. Essa declaração é de uma homofobia evidente, é lamentável. Mas de certa forma ela demonstra a importância de afirmarmos a necessidade de que os espaços das lutas, das artes-marciais, sejam também inclusivos. Hoje, eles são um privilégio masculino, pois, embora em tese não proíbam a participação de ninguém, na prática impõe uma série de constrangimentos e dificuldades a LGBTs e mesmo a mulheres.
BGM: Muitas pessoas ainda acham que ter um treino específico para essas minorias trata-se de um privilégio, vocês vêm dessa forma?
HP: (Risos)… Ouvimos recentemente de um determinado mestre de arte-marciais que a existência de uma turma para LGBTs seria um absurdo, uma discriminação, pois todos podem treinar em qualquer turma “normal”. Bem, aí a pergunta que fazemos é a seguinte: Em que turma de defesa pessoal vocês têm pessoas trans? Em que turma de artes-marciais vocês tem alunas travestis? Se de fato as academias de lutas são lugares assim tão “abertos”, por que essas pessoas, por que travestis, trans, e LGBTs de um modo geral não estão lá? A verdade é que preconceitos só podem ser mantidos enquanto forem negados. É similar ao mito de nossa “democracia racial”, somente negando a existência do racismo, ele pode se perpetuar. Do mesmo modo, só negando a existência de LGBTfobia esta pode se manter. Afirmar que estes espaços são “abertos” e “sem preconceitos” é algo fantasioso e até mesmo perverso. É necessário reconhecer esses preconceitos e enfrentá-los, por isso é importante a existência de grupos que deem visibilidade a estas demandas, isto jamais seria um privilégio. Privilégio é poder frequentar qualquer lugar, qualquer espaço sem ser objeto de piadas, chacotas, discriminações. Privilégio é não ser privado de oportunidades em razão de sua sexualidade ou gênero. Enquanto LGBTs forem objeto de discriminações, tais medidas de enfrentamento ao preconceito jamais serão privilégios. Estamos anos luz atrasados com relação ao que se faz na Europa e em vários lugares dos EUA em que turmas dedicadas a minorias, associações desportivas LGBTs são uma realidade há muito tempo.
BGM: . Os alunos dessas turmas específicas já praticaram outra arte marcial antes?
HP: Poucos de nós já praticaram antes alguma arte marcial. Para a maior parte dos LGBTs, essa é uma realidade estranha.
BGM: Qual a maior dificuldade apresentada numa turma mista?
HP: Bem, como afirmamos acima, um dos motivos de nossa existência é o de afirmarmos um espaço em que as pessoas possam treinar, desenvolver suas aptidões sem experimentar preconceitos ou discriminações, coisa que dificilmente poderia ser garantida em turmas comuns.
Agradeço , em nome de toda a equipe BJJ Girls Mag, a disponibilidade do Halisson em responder às minhas perguntas, pela presteza, simpatia e clareza em abordar essas delicadas questões. Sabemos que estamos, como ele mesmo disse, muito atrasados no quesito equidade, mas projetos assim nos fazem querer continuar.
Oss.
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