“O judô não é o que muitas pessoas acreditam que ele seja;
isto é, o judô é mais do que uma arte de luta praticada no dojo.
O significado básico é muito diferente; é universal e profundo.”
Jigoro Kano
Um dia de treino qualquer, um faixa roxa muito forte, rápido e bem preparado fisicamente conseguiu, enquanto tentava a passagem de guarda, subir e administrar seu peso sobre minhas costas. Travei meu queixo rapidamente, pois sabia da sua cobiça por minha gola para tentar um estrangulamento. E ele pegou, porém, muito folgado, o que me rendeu tempo de escapar de sua tentativa frustrada de uma finalização no mais graduado. A peripécia lhe rendeu um indesejado cansaço, tendo em vista que ele insistiu por algum tempo no erro fatídico, que acabou com toda possibilidade de continuar a luta da melhor maneira possível.
Perceba que no curto relato o atleta faixa roxa cometeu dois equívocos que são normais em qualquer nível de graduação. Erros que custam o resultado da luta em muitas vezes. Encaixar a finalização folgada e insistir na mesma. Perceba ainda que alguns fatores emocionais também contribuíram com o ocorrido, como chegar às costas do adversário mais graduado. Uma situação de total privilégio.
O mestre Jigoro Kano para desenvolver seu estilo de Ju-jutsu (Judô) no Japão em 1882, estudou os vários significados da arte que praticava desde a juventude. Sempre se apropriando do conhecimento de diversos mestres, que possuíam cada um sua forma particular de ensinar as técnicas. O que causou-lhe uma inquietação a respeito. Os mestres pouco percebiam um princípio único que delineava o ju-jutsu o ju Yoko go o seiso que pode ser traduzido como “o suave controla o duro”.
Em seus escritos, o mestre Kano sempre utilizava o exemplo do oponente medindo sua força dentro de uma escala de 1 a 10, e que ele possuindo dentro da mesma escala força 7 enfrentasse o oponente de força 10. Para melhorar o entendimento, imagine você, mulher numa balada, e de repente um rapaz mal educado, destes que passam o dia na academia aumentando seu tônus muscular lhe empurre para uma parede na intenção de lhe violar. Se você medir força com o idiota, desculpe, com o “rapaz”, obviamente ele levará vantagem. Porém, se você ceder a força 10 dele e próximo a parede você se afastar um pouco para o lado e ajudando-o a completar o seu percurso você o empurra para a parede, ele terá seus lábios saciados por um belo beijo na parede.
Mestre Kano sempre se preocupou que o Judô (caminho da suavidade) fosse entendido como um princípio básico do comportamento humano e que estes princípios fossem aplicados tanto como defesa de ataques, como uma forma de educação física e que não se limitasse apenas ao dojô. Mas o judô não é outra arte marcial? Sim, se olharmos no aspecto esportivo suas regras são muito diferentes das regras do Jiu-jitsu, mas não esqueça que as técnicas e os princípios sempre serão aplicáveis em ambos. Já mostrei em outro artigo o Kosen Judô (1912) que enfatiza a luta de solo. Lembremos também que o Judô é um método de educação moral e de harmonia coletiva.
“…Se todas as pessoas do grupo evitarem atitudes egoístas e agirem de acordo com as necessidades e as circunstâncias dos outros membros, o conflito poderá ser facilmente evitado e reinará a harmonia. O conflito gera perda para todos…” (Kano, 2008 p.61)
E o nosso amigo faixa roxa, onde ele entra nesta lógica? Simples, se ao invés de utilizar toda sua energia, força e agilidade numa finalização não encaixada, ele estabilizasse a posição e ajustasse melhor o estrangulamento bem próximo da minha orelha? Ele utilizaria uma contração muscular menor, evitando um desgaste físico, pois sua epífise distal radial encaixaria no meu pescoço interrompendo o fluxo sanguíneo em minha carótida. Mas o fator psicológico falou mais alto, – Estou nas costas de um graduado, é tudo ou nada! Eu dentro da cena, verificando que a posição não me oferecia risco algum apenas esperei… Cedi a passagem da força do adversário.
Todos dentro do tatame ou até fora estamos passivos de uma vez ou outra cometermos tais erros. Tudo por falta do que o Mestre Kano chama de treinamento intelectual. Para ele, as pessoas com um preparo intelectual compreendem melhor e com mais cautela, observação, raciocínio, julgamento e imaginação. A energia mental deverá ser utilizada da maneira mais eficiente possível para que se chegue ao resultado desejado. O que ele denomina de Seiryoku saizen (o melhor uso da energia) e seiryoku zenyo (eficiência máxima). Vamos exemplificar no jiu-jitsu:
Eu sou uma excelente guardeira, meu próximo treino será com um adversário(a) experiente e muito forte. Eu devo insistir numa raspagem que me colocará numa situação vulnerável a uma passagem? Ou seria mais interessante eu movimentar a luta, pois sou menor fisicamente e minha oxigenação das células são mais favorecidas que ele (a) que tem um volume corporal maior, o que o levaria a fadiga? Para poder analisar a situação eu precisei de um conhecimento breve sobre fisiologia. Os indivíduos de volume corporal maior obviamente possuem uma quantidade celular maior, isso quer dizer, ele precisa de um fluxo sanguíneo mais rápido para oxigenar as células, logo, seu ritmo cardíaco será alterado, como também a produção de adrenalina.
Outro exemplo: Estou lutando com uma excelente guardeira, ágil, rápida e forte nas pernas e quadril, como farei para sobrepor a esta situação? A partir do meu conhecimento em biomecânica (sistemas de alavanca) entendo que o grupo muscular utilizado pela a adversária tem origem nos quadris e pernas, assim como num carrinho de mão, eu possuo mais força quanto mais distante do eixo (pelve) minha pegada esteja. Minha pegada no tornozelo, utilizando como apoio do indicador e polegar nos maléolos lateral e medial, eu terei um maior domínio e facilidade para passar a guarda.
Eu poderia citar várias outras situações, mas o que é mais importante é que a vitória que temos que perseguir é a vitória contra nossa própria ignorância, mais uma das citações do mestre Kano. Sempre obteremos êxito quando dominarmos primeiramente a nós mesmos. Podemos praticar cotidianamente se dedicando a aqueles momentos do treino que para muitos, não passa de minutos de repetição chata, prestando mais atenção aos detalhes e procurando também nossos próprios detalhes para a posição. E claro, lendo, estudando e pesquisando mais, seja sobre nossa arte marcial, seja sobre o nosso trabalho, seja sobre nossa conjuntura. Assim, poderemos utilizar nossa energia física e mental de uma forma mais eficiente. E lembre-se sempre: o caminho da suavidade não está restrito a uma arte marcial, ele é bem mais amplo, longo e profundo.
Oss!
REFERÊNCIAS
FREITAS, DS; MIRANDA, Renato; BARA FILHO, Maurício. Marcadores psicológico, fisiológico e bioquímico para determinação dos efeitos da carga de treino e do overtraining. Revista Brasileira de Cineantropometria & Desempenho Humano, v. 11, p. 457-467, 2009.
FERNANDES NETO, A. J. et al. Biomecânica. Univ. Fed. Uberlândia – 2006
KANO, Jigoro. Judô Kodokan. Traduzido por Wagner Bull. – São Paulo: Cultrix, 2008.
KANO, Jigoro. Energia Mental e Física: Escritos do fundador do Judô Traduzido por Wagner Bull. – São Paulo: Pensamento, 2008.