Como é ser homossexual em um tatame? Confira a entrevista com o faixa roxa Guto Marttins

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Recentemente publicamos um artigo sobre a difícil relação entre a comunidade LGBTQIAPN+ e a repercussão foi imensa. Basicamente o texto fala sobre como o tatame ainda é um lugar onde prevalece o machismo, principalmente para homens homossexuais, e o quanto isso afasta essa comunidade que acaba por ser vítima de chacota, segregação e muitas vezes, até humilhações.

O fato é que, só se for em Nárnia que existe essa inclusão que tanto falam. Porque neste planeta, e especificamente nesse país, se você é mulher as chances de ser assediada são enormes. 

Se você é lésbica, as chances de fazerem piada contigo são grandes. 

E foi para trazer esse olhar de quem realmente vive nesse contexto, nós entrevistamos o Guto. Um homem gay em uma equipe de jiu-jitsu. Confira essa entrevista na íntegra com alguém que realmente tem lugar de fala sobre o tema. 

Sendo um homossexual no tatame: Entrevista com Guto Marttins ( @g_utto)

Samanta: Como e porque começou a treinar jiu jitsu?

Bom, Samanta, primeiramente, é um imenso prazer. Me sinto muito lisonjeado pelo fato de você ter se interessado pela minha causa, que inclusive acho que nós, como eu já havia te dito, tanto gays quanto mulheres lutamos por causas semelhantes, que é conquistar o nosso espaço, o respeito e etc.

E vamos lá então. Para a primeira pergunta, como e porque eu comecei a treinar Jiu-Jitsu? Eu comecei nas artes marciais aos 6 anos de idade, meu pai é ex-atleta de judô. Eu comecei aos 6 anos no judô, parei com 21 anos e comecei mais por influência do meu pai mesmo.

Samanta: Há quanto tempo treina?

E aí eu fiquei um tempo afastado dos tatames. Eu deixei o judô aos 21, no ano que eu ia inclusive pegar minha preta, eu sou marrom de judô. Fiquei alguns anos parado devido a alguns problemas de saúde, tive um câncer no estômago e me afastei do esporte até que na Europa eu tive contato direto com o jiu-jitsu e faz cinco anos e meio que eu migrei.

Samanta: Como foi essa busca por uma academia?

No jiu-jitsu a busca por um ambiente no qual eu me sentisse mais à vontade, aceito, foi mais complicado porque quando eu iniciei no jiu-jitsu, eu iniciei num dojô no qual fizeram a escolha por mim, então foi um ambiente no qual eu obrigatoriamente me ambientalizei. 

No jiu-jitsu, foi uma procura solo praticamente, então eu visitei muitas equipes, diversos tipos de ambientes e equipes. 

E confesso que até fiquei um tempo meio que sem criar limo em lugar nenhum, transitando até eu ter me achado aqui novamente em Santa Catarina. O tempo maior que eu havia ficado pra tentar me ambientalizar no meio da equipe – até pelas circunstâncias que muitas vezes aconteciam, desagradáveis -, era 3, 4 meses, no máximo.

Samanta: Como foi a recepção no começo?

A recepção no jiu-jitsu nunca foi algo assim no qual eu criasse muita expectativa, pelo fato de sabermos que ao visitar uma equipe nova, na maioria das vezes a gente não tem aquele acolhimento total, as pessoas querem na verdade arrancar nossa cabeça, mostrar o jiu-jitsu que tem e a gente já vai ciente disso.

Então a cada visita, a cada equipe, era uma sensação de aprovação, de um teste mesmo – literalmente -, até social, então eu já ia esperando o pior: ou ir pra arrancar cabeças ou eles arrancarem a minha.

O meu estilo, a forma de eu me portar sempre chamou muita atenção. Até porque eu não sou um homossexual no qual eu me preocupe em esconder o que eu sou. Tomo muito cuidado sempre pela questão de postura, acho que postura é fundamental também pra não soar agressivo aos olhos e ter, de repente, um ódio gratuito, mas ao falar comigo, se prestar bem atenção em mim, visivelmente dá pra perceber que eu sou homossexual.

Samanta: Você já teve algum problema na hora do treino? No sentido de alguém ficar desconfortável com você ou simplesmente não te chamar pra treinar

Não só isso, como também eu treinei em um local onde a maioria eram competidores. Assim que eu estava iniciando os treinos neste local, eu tive um rapaz no qual ele olhou na minha cara e disse que não iria treinar, não iria rolar comigo porque eu era “viado”.

Então, fora os olhares de desaprovação, até literalmente eu me provar, como eu disse, essa sensação que a gente sempre tem – quem é homossexual principalmente desde muito cedo a gente desenvolve isso socialmente -, até eles verem que aquilo ali pra mim era sério, que até eu literalmente enfiar o respeito necessário guela abaixo, eles viram que comigo eles não iam tirar casquinha. 

Como eu disse, eu ia pra lá, ou pra arrancarem minha cabeça, ou eu arrancar a deles. Então aí a postura deles ia mudando em relação a mim, porque é aquela coisa, eu sempre fui a favor de não tentar conquistar respeito no grito, e sim, mostrar que eu sou diferente. E isso, graças a Deus eu sempre consegui. Então a questão da primeira vista, eu já tava preparado para o que eles pensavam e como eu poderia reverter isso a meu favor futuramente.

Eu sabia que uma hora ou outra todas as concepções deles a meu respeito, sobre o que é um gay numa arte marcial, iam ser postas por terra.

Samanta: O que o jiu jitsu mudou em sua vida?

O Jiu-Jitsu mudou praticamente tudo na minha vida, principalmente a minha concepção em relação às pessoas e aos homens, principalmente.

Me deu uma confiança que no judô eu não tinha, me deu um empoderamento, uma força mental, uma força psicológica, física, totalmente diferente, então assim, eu só tive ganhos desde essa mudança.

Samanta: Vemos que você também faz performance (vi no insta), alguém do jiu jitsu já falou algo em relação a isso?

Sim, eu trabalho com eventos, danço na noite, eventos de eletrônico principalmente, voltados para o público gay.

Apesar de serem coisas completamente distintas, diretamente em relação a isso, nunca ninguém me falou absolutamente nada. Claro que quem me segue, acompanha minha vida, os meus shows, os meus extremos, os meus pólos extremos, que vão do esporte a dançar na noite. Mas nunca diretamente ninguém me falou nada negativo em relação a isso não. 

Pelo contrário, aqui no Brasil principalmente eu tenho uma grande legião de pessoas que admiram meu trabalho, só há elogios.

Eu procuro separar muito bem isso. E quem me conhece também tem total confiança na minha personalidade, naquilo que eu falo e faço. 

Então, claro, trabalhar com eventos numa área mais sensual, explora uma sensualidade, uma imagem que pro jiu-jitsu é totalmente inversa, então eu tento não levar isto para o jiu-jitsu, pela questão da postura, como eu te disse. É como se eu tivesse personalidades diferentes. Tem o Guto do tatame e tem o Guto dos shows, então é como se em cada ambiente eu assumisse a personalidade que eu necessito.

Samanta: Já teve de usar alguma das técnicas para se defender de algum abusador?

Bom, eu só tive que usar técnicas pra me defender no próprio jiu-jitsu mesmo. Porque sempre acontece de, às vezes, ter que trocar força com hétero moralista e conservador, sabe, ou aquela pessoa que eu tô de olho faz horas querendo também dar uma amassadinha, que a energia às vezes não bate, que acha que às vezes pode me dominar dentro do treino… então a porrada come.

No cotidiano nunca precisei. Como eu disse, eu sou muito ponderado, acho que a diplomacia resolve tudo; eu sou muito diplomático, então acho que a questão física, agressão física, acho que seria a última das ocasiões que me fariam perder as estribeiras dessa maneira com alguém. 

Mas no meio do jiu-jitsu sim, direto. Principalmente porque assim, a minha equipe atual é muito grande, maioria são competidores…

As pessoas com quem eu treino geralmente são as pessoas que eu tenho mais afinidades, tem muitos que eu nem rolei ainda e que se rolar vai sair faísca, então acontece.

Mas é aquela coisa, até que não me ataque diretamente tudo bem. Cada um no seu quadrado.

O Jiu Jitsu me trouxe uma vontade no qual eu no judô eu já havia perdido, que é pegar a minha preta e eu quero trabalhar com mulheres, defesa pessoal de mulheres. É o meu público alvo, é o público no qual eu me dou bem e é assim o que eu mais desejo futuramente, assim, o trabalho que eu mais desejo, almejo, realmente é este, é ministrar aulas e trabalhar com mulheres.

Eu sempre fui competidor, mas eu confesso que eu estou longe das competições uns três anos mais ou menos. Eu ia, inclusive, fazer o retorno às competições este ano, mas houve algumas coisas que foram acontecendo no qual foram me afastando deste momento, inclusive, mês passado eu ia fazer a minha estreia na AJP, que iria ter aqui, mas eu acabei machucando um pé uma semana antes da competição, então acabou me impossibilitando de participar. 

Então, sempre tem uma coisinha que parece que está acontecendo para adiar, mas confesso que eu também estou sem muita pressa disso, mas sim vou voltar, pretendo voltar, sei que é um ambiente totalmente diferente, um ritmo totalmente diferente, mas eu acho que para a estrada até a preta é necessário a gente vivenciar isso, até pra ter mais segurança, mais credibilidade, saber como passar a experiência e o conhecimento.

Eu tô até revoltado com tantos comentários no post (do texto sobre a comunidade LGBTQIAPN+). A gente sabe que não tem que gastar energia com certas coisas porque não adianta você tentar levar a pérolas a porcos, entendeu? Mas a necessidade desse assunto ser falado,  ser discutido é imensa, e tinha ainda inúmeras outras coisas para a gente falar sobre isso. Infelizmente a nossa entrevista ainda foi curta porque eu acho que não vai ser o suficiente para atingir o que deveria atingir, e isso é muito triste.

Mas eu só tenho te parabenizar pelo seu trabalho, pela sua iniciativa é muito muito bom mesmo ter pessoas que virem atenção para isto, sabe, porque senão tudo se torna ainda mais difícil embora não entre essa informação na cabeça de muitos, com aquela disseminação básica, aquele preconceito disfarçado de opinião que é o que mais temos né, enfim é constrangedor e ridículo até.

Infelizmente isso começa assim, Brasil, principalmente nível Brasil; as pessoas não sabem escolher o próprio presidente, não sabem votar no reality show, você imagina só, desde que colocaram um homem daquele no poder, não é pela questão de quem ocupou ou não a presidência. A ideologia que esse homem pregava…

Você imagina a força que outros como ele, que compartilham dessa mesma linha de raciocínio, as mesmas ideologias, as mesmas ideias, saíram da caixa e pegaram ainda mais força. 

Então, assim, não é só uma questão social, uma questão política, é uma questão que envolve tudo. O que não cabe na minha cabeça é aquilo: você faz parte da comunidade? não faz? Então se cale, ouça ou se não quiser aprender feche os ouvidos e se retire, não siga, não compartilhe nada, entende? Mas cale-se, se recolha. É isso que não entra na minha cabeça. 

Eu vi ali no comentário dizendo que “ain jiu-jitsu é lugar de inclusão, respeito…MENTIRA! Eu tô aqui, sabe? 

Minha vontade uma hora era pegar um podcast, rasgar o verbo em relação a todas as minhas vivências no esporte. Cada momento, sabe? É inconcebível alguém achar, basear o mundo na vivência hétero branca normativa dela, entendeu? A pessoa não sabe nem do que ela está falando…

Isso só me faz chegar à conclusão que realmente a internet é lugar tóxico, infelizmente as pessoas parecem que ao invés de progredir, estão regredindo mentalmente, intelectualmente.  É decepcionante, frustrante, broxante. 

Este artigo é uma colaboração entre Samanta e Marcela com o objetivo de contribuir com a causa trazendo mais clareza sobre o real cenário vivido pela comunidade LGBTQIAPN+ em relação à comunidade do jiu-jitsu. 

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