Relato de um praticante de jiu-jitsu LGBT e seus medos

Há 4 anos eu escrevi por aqui um texto que problematizava a inserção de LGBTS num espaço tão masculinizado como o nosso jiu-jitsu. De lá pra cá algumas coisas mudaram. Fala-se ou discute-se sobre assédio nos tatames, as denúncias cresceram, grandes nomes já foram expostos praticando algum tipo de assédio, violência ou machismo. O silêncio ao menos foi um pouco superado. Mas, onde estão as questões dos LGBTs? Eles se inseriram no nosso esporte? De que forma?

Na época do texto, eu fui questionado numa oficina sobre jiu-jitsu, na Universidade Estadual de Feira de Santana, como seria a recepção desses corpos que não atendem às normas heteronormativas dentro de um espaço com tantas demonstrações de masculinidades construídas numa lógica de submissão, dominação e exploração dos corpos de mulheres e LGBTs. Percebo que de lá pra cá, de acordo com as denúncias levantadas pelas mulheres, os comentários machistas e abusos ainda estão presentes nos nossos tatames. E claro, não esquecendo, o silêncio de algumas entidades reguladoras.

Puro reflexo de nossa sociedade. Em 2019, de janeiro a maio, 141 mortes de pessoas LGBT foram registradas, 126 homicídios e 15 suicídios. Uma morte por homofobia a cada 23 horas. Mesmo sabendo que homofobia é crime, ainda testemunhamos “brincadeiras” depreciativas como “bora bicha”, “luta direito, viado”, entre outras, naturalizando relações de inferiorização de pessoas LGBT em nossos espaços. E eles estão. Escondidos. Com medo de repressões, fingindo ser o que não são ou escolhendo turmas exclusivas para LGBTs.

Seria muito curioso se não houvesse nas atividades esportivas uma reprodução do que se vê nas ruas, ou nas instituições de nossa sociedade: preconceito, violência e perseguição. E como faz parte de nossa filosofia uma evolução constante como atletas e seres humanos, vamos continuar reproduzindo violência e desrespeito nos tatames? Continuaremos a achar que chamar o colega de treino de forma pejorativa e que ofendem pessoas LGBT é uma brincadeira? Iremos propor discussões a respeito do tema?

Nosso texto de hoje traz um relato de uma pessoa que me procurou aflita, como outras que já me procuraram, mas que teve coragem de escrever um relato sobre o que passa cotidianamente nos tatames e fora dele. Medo principalmente de julgamentos. De ser excluído no esporte que ele tanto se identificou. Iremos preservar a sua identidade, usando outro nome, o que para mim é extremamente violento mas, ele teme ser identificado e sofrer represálias. O que me faz pensar: medo num ambiente que te ensina a superar o medo.

Vamos ao relato de Cris:

Recebi o convite de comentar sobre como é ser gay e fazer parte do mundo das lutas, mais especificamente do jiu-jitsu. Fui incumbido dessa tarefa mais ou menos em janeiro de 2020, mas apenas hoje, abril de 2020 parei para escrever algo. Me questiono a motivação de ter procrastinado uma atividade tão simples por tanto tempo e a única motivação que veio em minha mente foi o medo de ser descoberto, a insegurança da exclusão.

Farei uma rápida contextualização da atual situação mundial. Estamos sendo assolados com uma doença invisível, mas capaz de distanciar famílias e amigos. Esse distanciamento nos faz questionar o real sentido das coisas e compreender que a vida é passageira, por isso, senti confiança suficiente para discorrer a seguir sobre a temática proposta.

  • COMO ACONTECEU MEU PRIMEIRO CONTATO COM O ESPORTE:

Gosto muito de fazer musculação, mas sou muito agitado para fazer algo repetitivo como musculação, por isso sempre tive contato com todo esporte possível no decorrer da minha vida. Quando pequeno fiz boxe, mas criei aversão ao esporte por ter sido “obrigado” por meus pais a fazer. Tive que praticar essa atividade como uma necessidade de afirmação da masculinidade exigida pela sociedade, que exige homens durões e mulheres sensíveis. Assim, esse esporte deixou de ser prazeroso e passou a ser obrigação, com isso, não consigo passar próximo de academias com essa modalidade. Cheguei a fazer natação, handebol, basquete, entre outros, mas nunca me encontrei no esporte.

Sempre curti ler sobre todo tipo de informação, acredito que apenas seremos livres quando entendermos sobre o real sentido da liberdade, com isso, acompanho perfis no Instagram e vídeos no Youtube sobre discussões que me interessam (questões relacionadas a mulher na sociedade, negros e gays…). Em uma das discussões conheci o perfil de David Torres com várias discussões sobre temáticas que me interessam, além disso, é um instrutor de jiu-jitsu. Entrei em contato com David e ele me passou algumas informações sobre a modalidade, passei a pesquisar mais sobre e na semana seguinte já estava participando da aula experimental, não parei mais.

  • O QUE MEUS AMIGOS PENSAM?

Meu grupo de amigos é muito restrito, mas todos seguem a mesma linha de pensamento que eu. Quando contei aos meus amigos que iria começar no jiu-jitsu, a primeira coisa que me perguntaram foi: você vai contar que é gay? Algumas pessoas perguntaram também: e se você ficar excitado? Vai conseguir se aproveitar dos héteros?

Esses questionamentos me fazer ter duas reflexões:

  1. Existem dois mundos (gay e hétero) com atividades estabelecidas socialmente para cada grupo, gays devem dançar e héteros devem lutar;
  2. Gays são vistos como incapazes de se controlar sexualmente. Que nos atraímos apenas pelo pênis e não somos capazes de ter contato com outros homens sem nos imaginar tendo relações sexuais com eles.

Acho que esses pontos têm relação com a ideia ultrapassada do conceito de homossexualismo, que via a homossexualidade como doença, que apenas com contato com gays, poderia haver o “contágio” (masculinidade frágil). Além do desconhecimento sobre o que é ser gay, claro que alguns grupos são totalmente sexualizados, que não conseguem ver outros homens (trato a homossexualidade do ponto de vista masculino por ser minha experiência), mas isso também acontece no mundo hétero, é relativo a índole e não a sexualidade.  

  • MEU MEDO

Durante os treinos escondo que sou gay, por medo de que outros lutadores não se sintam confortáveis em lutar comigo. Nos treinos, tento ficar o mais neutro possível, evito qualquer contato mais próximo dos lutadores… Tenho medo do julgamento, de ter que abandonar um esporte que aprendi a gostar em tão pouco tempo. Vivemos em um mundo que preciso esconder quem sou por medo da exclusão, pelo simples fato de ser gay!

  • O QUE ESPERO A PARTIR DA LEITURA DESSE TEXTO

Espero que as pessoas entendam como é difícil viver tendo que esconder quem é! Compreendam que se não posso rolar com eles por ser gay, eles não deveriam rolar com as mulheres [seguindo essa lógica absurda].

Quando estou rolando, não penso em nada, minha mente fica concentrada e focada em fazer os exercícios de forma correta, em ser meu melhor. Não me importo se meu colega de treino é homem, mulher, alto ou baixo, apenas me importo se ele for mais graduado, pois foco mais nos movimentos que ele faz para tenta copiar. Busco apenas respeito, que meus colegas sejam empáticos e que eu consiga focar apenas no treino, sem me preocupar se alguém percebeu que sou gay e começou a me olhar de forma diferente.

Apenas espero ter a liberdade de ser quem sou em um ambiente que tanto gosto. Liberdade discutida por Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido, onde expõe os medos da liberdade do ponto de vista do oprimido e do opressor. Liberdade compreendida por George Orwell como: a liberdade de dizer que dois mais dois é igual a quatro. Liberdade entendida por mim como a luta diária para ser quem sou em qualquer ambiente, entendo que a liberdade não me é concedida, precisa ser conquistada diariamente, mas um simples gesto de empatia seria capaz de facilitar esse processo. Assim, encerro com uma colocação de Cecília Meireles: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda…”.

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