O primeiro desafio que enfrentei quando convidado pela primeira vez para ministrar uma oficina de defesa pessoal feminina em uma escola pública foi a dificuldade material. Não haviam tatames nem uma sala apropriada. Era uma turma de meninas entre 11 e 16 anos. Diante das condições objetivas para trabalhar, optei pela conversa sobre os conceitos de violência, que seriam mais úteis do que as técnicas propriamente ditas, dada a realidade ali encontrada (meninas de uma comunidade carente) e a necessidade de um tempo suficiente para a aprendizagem técnica.
Fui surpreendido com a reação das participantes ao identificar em minhas falas episódios que elas já tinham vivenciado em casa ou não. A partir daí todas as oficinas foram adaptadas para que houvesse sempre uma conversa inicial e depois a parte técnica.
Sempre pensamos numa maneira de apresentar técnicas de defesas básicas e eficientes, para garantir que as pessoas envolvidas nas oficinas se apropriem do mínimo necessário para agir numa situação de risco. Diante do desafio da falta de material, considerei a relevância de se ampliar os conhecimentos das participantes com discussões sobre o que é violência, de uma forma geral, entre outras informações que trabalhem no âmbito das análises de risco.
Trata-se de pensar em ações e medidas para evitar situações de risco que as vítimas possam enfrentar. Promover discussões ou debates antes da parte prática da oficina apresentando conceitos sobre violência doméstica, sexual, psicológica, patrimonial, simbólica, com o intuito de potencializar a antecipação das meninas diante de qualquer situação de violência. Para que não seja necessário ou que se possa evitar que tenham que enfrentar uma violência física.
Poucos espaços discutem ou promovem tais tipos de conhecimento. E é por isso que acredito que o jiu-jitsu pode ser um valioso instrumento de informação e enfrentamento da violência contra a mulher, em nossa sociedade, unindo o trabalho informativo com as técnicas de defesa pessoal, principalmente em comunidades. Algumas pesquisas já apontam que as mulheres que mais sofrem violência doméstica possuem baixo nível socioeconômico e escolar. Muito embora a violência contra a mulher se aplique em todas as classes sociais.
Apesar de as comunidades apresentarem dificuldades materiais para a realização das oficinas (falta de tatame), isso não quer dizer que não se possa trabalhar defesas de agarramento, entre outras. O trabalho de análise de risco e a conversa sobre os conceitos de violência serão de grande importância para as participantes, promovendo uma aproximação do conteúdo e oferecendo as participantes a oportunidade de relatar possíveis episódios que tenham ocorrido com elas, ofertando assim um ambiente de sororidade.
Algumas colegas já trabalham nessa perspectiva. Mariana Couto, faixa azul da equipe Corpo e Mente, de Feira de Santana, nos fez um relato sobre sua experiência com uma oficina e da relevância de nós do jiu-jitsu nos aproximarmos mais das comunidades:
A oficina de defesa pessoal que fui convidada para ministrar aconteceu na Academia Budokan de Karatê, na Av. Senhor dos Passos, dirigida pela Sensei Dilene e foi destinada tanto a mulheres que nunca tiveram contato com arte marciais, como a mulheres que já praticavam alguma, como o karatê, mas nunca tiveram contato com a defesa pessoal.
De início, aconteceu um rápido bate-papo com as mulheres a respeito da violência contra mulher e do nosso principal oponente no momento da defesa pessoal: nosso controle emocional. Foi uma experiência muito engrandecedora, pois, nessas oportunidades, podemos conscientizar as mulheres a mudarem o discurso de “isso nunca vai acontecer comigo” para “isso pode acontecer comigo e preciso estar preparada”.
Penso que as oficinas de defesa pessoal para mulheres são de enorme importância, pois nos tira de uma situação de extrema vulnerabilidade e nos faz pensar preventivamente em como podemos nos poupar de situações de violência, tanto em casa como na rua.
Creio que uma mulher que tem o mínimo de conhecimento básico da defesa pessoal tem outra postura diante de situações ameaçadoras. Assim como a mídia e a sociedade tem se preocupado tanto ultimamente em conscientizar de forma veemente a população a respeito dos meios preventivos para não contrair o novo COVID-19, com essa mesma veemência as nossas mulheres deveriam ser conscientizadas a aprender mais sobre defesa pessoal, tanto preventiva, quanto ostensiva e repressiva, porque, infelizmente, o vírus do feminicídio e da violência contra mulher é o que mais mata mundialmente e ninguém mais se alarma com isso.
Yanna Matos, faixa roxa da equipe Saiyajin Jiu-jitsu também nos contou sobre sua experiência numa comunidade carente em Feira de Santana e da relevância dessas oficinas:
O convite pra ministrar uma oficina de defesa pessoal pra um coletivo feminino de um bairro consideravelmente marginalizado na cidade onde moro foi o ápice da minha felicidade e satisfação com meu esporte e como ser humano. Porque penso que o sentido disso tudo é poder alcançar mais e mais pessoas, ajudar e contribuir de forma positiva com a sociedade e que no caso seriam com mulheres. Alegria era meu nome e sobrenome naquele momento.
Tive muitas dificuldades pra participar do evento, pois tínhamos que levar o tatame pra o centro comunitário que é muito longe e em um bairro socialmente prejudicado. As pessoas que estavam por trás da organização do eram também jovens como eu, aparentemente estudantes de nível superior e sem recursos. Por sorte conseguimos transportar as placas de tatame e lá eu cheguei.
Um grupo feminista com 4 meninas jovens e visivelmente informadas estavam guiando a roda de conversa com as residentes do George Américo. No final, eu e minhas duas amigas de equipe fomos convidadas a falar antes que começasse a parte prática da defesa pessoal. Quando comecei a falar e olhar pra cada mulher que estava ali, por um momento percebi a necessidade de auxílio que as pessoas têm. Eram mulheres aparentemente com mais de 35 anos, pouquíssimas jovens (pensei: cadê a minha geração nessa reunião?).
Cada mulher que estava ali fazia um relato da sua vida dentro e fora de casa. Das obrigações como mãe, avós, esposas e filhas, da falta de recursos básicos, da violência do bairro. É duro ver a realidade das outras pessoas, mas eu me senti feliz em estar ali pra repassar as técnicas de defesa pessoal, em minha cabeça já seria de grande importância.
Foi uma experiência muito boa, apesar de ter aquele choque de realidade que às vezes precisamos ter. Eu queria montar projeto social com o jiu-jitsu e agora eu quero muito mais. Acho que todas as pessoas precisam sentir e ter contato com a realidade alheia pra que aprenda a valorizar o que tem (acesso à informação, a lazer, educação, esportes) e aprender a se preocupar em contribuir com quem não tem. Ver que existe também uma parcela jovem que se empenha em ajudar motiva muito.
Fiz contatos com aquelas pessoas e pretendo estar ali mais vezes e motivar as minhas colegas de treino a atravessarem as fronteiras pra estarem ali também. E nesse momento de pandemia, com todo esse caos e as medidas de prevenção do coronavírus fico pensando como estão aquelas mulheres e o bairro delas. É um momento em que se pensa nas pessoas que moram nas ruas e não tem abrigo pra fazer quarentena e nem recursos de higienização.
Enfim, ainda há muito o que se fazer, aprendi a fazer as coisas com as ferramentas que tenho no momento. Começar a fazer é o segredo. Não esperar o tempo passar pra ajudar o nosso semelhante,é o segredo. E a minha maior ferramenta hoje é o esporte que prático. E que assim seja, que toda comunidade do jiu-jitsu possa estar sempre com esse trabalho responsável de alcançar positivamente as pessoas. Principalmente as menos favorecidas.
Sugestões para a realização de oficinas (locais com pouco material ou comunidades)
- Estudar um pouco sobre as estatísticas e sobre pensadoras(es) que discutem violência contra as mulheres (literatura feminista). Frequentar grupos de apoio ou coletivos feministas também auxiliam no estudo. Avaliar numa linguagem acessível para as participantes, alguns conceitos sobre violência precisam ser traduzidos para a linguagem popular.
- Conhecer um pouco das mulheres que estão participando (se são donas de casa, estudantes), isso ajudará a nortear os temas a serem discutidos antes da prática.
- Disponibilizar materiais de leitura. Uma dica é criar um grupo de whatsapp com as participantes para compartilhar cartilhas e folhetos informativos sobre violência, prevenção, e instituições de combate e apoio.
- Optar por técnicas simples e de fácil compreensão. Pode ser que muitas participantes não tiveram a oportunidade de praticar alguma atividade física/esportiva, e podem possuir algumas limitações motoras.
- Acolher afetuosamente as participantes, criando um espaço de respeito e de afago, tendo em vista que a realidade de muitas já é de muita violência (falta de saneamento, segurança pública, educação, saúde, lazer). Muitas meninas e mulheres ao se sentirem acolhidas, desabafam um pouco nestas oportunidades.
- Lembrar de toda a superação, autocontrole, determinação e coragem que o jiu-jitsu nos ensina. Fortalecer mentalmente as participantes, de uma forma que entendam que não estão sozinhas nessa luta. Você pode ser a única pessoa a chegar nestas mulheres.
- Por fim, pensar nas diversas possibilidades de atuação que o jiu-jitsu pode oferecer. Nem sempre são de medalhas que as pessoas precisam. Às vezes, a simples organização de um evento numa comunidade já diz de uma forma simbólica “estamos juntas! Você não está sozinha!” O abandono do estado e a criminalização das comunidades é muito perverso.
A comunidade do jiu-jitsu pode contribuir muito no enfrentamento da violência contra a mulher. Vamos à luta?!