Sobre confusões nas redes sociais que vão para o tatame

Parecia um dia normal, comum, um início de semana pós competição. Comum. E de repente as coisas esquentaram fora do normal durante a luta. Dois amigos meus chegando às vias de fato durante o treino. Eu nunca imaginei que chegariam a este ponto, por diferenças políticas? Alguém teve um dia ruim? Cá do meu lado do treino só observei o movimento mais acelerado, estremecendo todo o tatame.

Eu conheço um pouco os dois e tenho certeza que o motivo foi muito grave. Na presença do Sensei, acontecer uma coisa dessa?

O mundo tá louco, alguns diriam. As pessoas estão se estranhando por besteiras? Acho que não, acho que tem um quê além. Nas entrelinhas. Outro dia, no treino, rolou uma brincadeira com a Vanessa, porque ela nunca falava de homens… Eu dei uma risada sem graça, mas depois me senti mal. O que isso me acrescentava? Percebi que a coitada ficou sem graça também. Mudando o assunto. Já a Fátima é zoada pela quantidade de relações que ela acumula por semana.

Eu sempre li e ouvi nas revistas coisas sobre o jiu-jitsu. Mensagens filosóficas, estimulantes. Me parecia o ambiente ideal para se fortalecer espiritualmente. Ser um ser humano melhor. E claro, as mensagens são silenciosas, não estão aos olhos dos que de imediato procuram. Veja quanta humildade, um mais graduado dando os três tapinhas e parabenizando o menos graduado pelo feito… Como também, a solidariedade do colega sinalizando um descuido meu com um braço, uma imobilização mal feita. É isso! Uma atividade com seres humanos não seria diferente, eu percebo o contrário do que falei também. Gente arrogante, fria, prepotente… Nem o bem é fruto da arte nem o mal, estas pessoas passam pouquíssimas horas de suas vidas dentro dessa sala. Não é possível que 90 minutos por dia, 270 por semana, 1.080 minutos por mês e… Nem sei quantos por ano, seja suficiente para tornar alguém bom ou ruim.

As discussões se concentram, agora, em crucificar o culpado… “Bem que o Robson poderia deixar pra lá” “Rapaz, este Cléber é louco, o moleque é sinistro mano, pegou o Robson de Jeito!” Observo tudo de uma forma preocupada. Tento procurar razões para dois amigos se digladiarem assim. Me questiono no quanto as “brincadeiras” não são culpadas? É que, tem espaços que não podem ser ultrapassados sabe? Nem sempre quero comentar com as meninas coisas de meu relacionamento. Às vezes preciso, quero alguém pra me ouvir. Só não queria que me violassem, entende?

– Julia! Estão dizendo que o Robson e o Cleb brigaram por conta de um comentário de Facebook! Você sabia? – Me pergunta a Rafaela.

– Não, Rafa, você é a primeira pessoa a me informar por aqui.

– O Cleb compartilhou umas fotos, de um evento numa escola, e tinha uma galera vestida de gari, vendedor da Mc Donald, alguns fazendo black face… Ela acrescenta. Aí o Robson fez um comentário que o Cleb não gostou… – A Rafa encerra o relatório.

Fiquei muito assustada e percebi o tal motivo. Precisava ouvir os meninos, conversar um pouco com eles, tentar apaziguar a situação. Não era possível que por tão pouco se perca a cabeça. Falei primeiro com o Cleber, que foi o que partiu pra cima. Talvez o comentário tenha ofendido muito ele.

– Cleb! Posso conversar com você, amigo?

– Oi, Júu. Tranquilo.

– Você está mais calmo? – Pergunto.

– Cara, esse idiota… Puts, não aguento mais essa merda! Não posso expor minha opinião que vem logo um babaca falar merda!

– Calma, amigo! Fique calmo! Por favor. – Respondo.

– Ju, amanhã a gente conversa, tá!

Deixei o colega de treino partir, tomar uma ducha gelada… Acalmar os ânimos, é melhor. Observo do outro lado do tatame, todo machucado, sendo atendido pelo Sensei, o Robson. Não sei se devo ir lá… Ele tem lágrimas no rosto, misturada com um pouco de sangue, que manchou um pouco também seu quimono branco. Decido ir.

– Oi, Robson!

– Oi, Jú, desculpa essa confusão, viu.

– Que é isso, irmão, você tá bem?

– Bem quebrado – Ele explica sorridente.

– Cara, o que é que cê oi falar pro Cleb que deixou ele tão transtornado?

– Puts, gata. Pouca gente sabe de minha vida por aqui, pouca gente um dia parou pra me perguntar, por que às vezes fico sem treinar por um mês… Enfim, minha vida é ralada, igual a sua, por ser mulher mas, diferente em partes. Comecei nessa corrida louca da vida largando nas últimas posições.

Fiquei comovida e sem entender bem a relação disso com o fato. Deixei ele partir também. Ele precisa de curativos e claro, tomar um banho frio também. Meu dia de surpresas estava só iniciando. Na saída, a Vanessa veio conversar comigo. Quimono amarrado na faixa, pendurado sobre os ombros, cabelos presos. Acenou e me convidou para uma conversa.

– Julia, o Robson te contou?

– Não, preferi deixar o coitado de boas, já passou por muito aperto, por hoje. Respondo.

– O Robson, Ju, é filho de um Gari. Sua mãe é faxineira, se ligou? Qualquer soco que ele tomou hoje, ou qualquer dia da vida dele, não doeu mais do que ele ver um monte de playboyzinho tirando onda com a mãe e o pai dele. Ele teve que iniciar a treinar já adulto, não rolava condições financeiras, entende? Ainda mais que os caras zoaram “se nada der certo”.

Fiquei assustada. Não sei expressar bem minha sensação depois dessa notícia. Não sabia se ficava triste, revoltada, nervosa… Não sabia, não sabia… Não sabia o que dizer. Fiquei em silêncio. Não era raiva, fúria, não… Eu estava me sentindo incapaz. Vanessa me pergunta:

– Você tá bem?

– Não sei ao certo como estou me sentindo. – Respondo

– Pois é, gata, hoje a galera pensa em expor seus pensamentos nas redes sociais, pintados como opinião. São as visões de mundo deles, suas crenças individuais. Demonstram parte do que eles são. E isso acontece também durante o treino, no trabalho, sem perceber que muitas vezes estão ofendendo algumas pessoas. Eu mesma, passo muito constrangimento aqui na academia. As meninas sempre me perguntando sobre meus relacionamentos… Ninguém nunca perguntou nada sobre meu dia, de onde eu vim, se eu curto Jazz, sabe? Se eu gosto do Metallica ou da Beyoncé, de novela… Isso é papo pra opinião, entendeu? Às vezes passa dos limites.

Percebo diante do relato da Vanessa, que me enquadro um pouco no que ela fala. A correria e até os meus problemas me fizeram entrar neste seleto grupo que minha parceira de treino narrava.

– Desculpa, Vanessa. Desculpa se já fiz isso com você algum dia. – Digo.

– Você é tranquila, Ju! Tô preocupada com o Robson. Ele é forte, mas não merece passar por isso.

– Vou ligar pra ele mais tarde, te aviso. – Respondo.

– Tenho que ir, minha carona chegou, amiga! Boa noite!  – Se despede Vanessa.

Uma outra menina bonita veio buscá-la. O carro vai acelerando na avenida, e percebo pelas imagens turvas do para-brisas traseiro que há uma troca de carinhos, na pausa do semáforo próximo. Não me cabe julgamentos, por hoje já basta. O que parecia um dia de treino normal, parecia um dia normal, me fez evoluir muito como pessoa. Como ser humano. É isso que está escrito nas entrelinhas. Às vezes as aulas transcendem às técnicas.

Durante a volta pra casa, pela janela do ônibus flagro o Cleb num barzinho… Se rendeu.  Nem imagino onde está o Robson. Depois do banho, deito, descanso um pouco o corpo. Deslizo os dedos no lençol fino, bem fino…Vulnerável… Como nossas relações.

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