A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA CONTRA LUTADORAS DE JIU JITSU

O entendimento sobre violência em nossa sociedade sempre se apresentou de maneira equivocada ou restrita apenas a violência física ou “aquilo que sangra”. Em outros casos só a proximidade ou empatia com quem sofre a violência faz perceber tal prática, aqueles que fazem parte do nosso círculo de relações.

De longas datas mulheres em suas práticas corporais sofrem de um tipo de violência que iremos tratar neste texto, a violência simbólica sofrida por lutadoras de Jiu Jitsu.

Este termo foi criado pelo sociólogo francês Pierre de Bourdieu, que em seus estudos analisava as relações sociais na contemporaneidade. Ele acreditava que era uma forma de coação que se apoia no reconhecimento de uma imposição determinada, seja ela econômica, social ou simbólica. O pensador discorreu sobre um tipo de relação em que o indivíduo reprimido também reproduz de maneira normal ou inevitável a violência sofrida por ele, não a reconhecendo como algo ruim. Em sua obra, o autor vai falar sobre as relações de dominação e imposição dos sistemas de comunicação e conhecimento, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe pela outra (sistemas simbólicos).

Utilizaremos sua teoria para explicar como se refere o autor a domesticação dos dominados. Não é raro ver casos de mulheres que reprimem outras mulheres pelo seu modo de vestir, por seu padrão estético ou pelas relações corporais em suas atividades esportivas, ou seja, mulheres que são acuadas por uma imposição reproduzem a atitude com outras mulheres sem perceber.

No caso do Jiu Jitsu fica muito forte a questão do agarramento no decorrer das lutas. O preconceito traz o julgamento a respeito da prática e, causa o receio em algumas mulheres que são coagidas a pensar que o contato físico constante com homens pode lhe trazer uma imagem negativa na sociedade ou que aquele ambiente não lhe pertence.

Claro que outros tipos de símbolos são responsáveis por criar no imaginário das mulheres o receio pela arte suave, já apresentamos alguns em artigos anteriores, mas o que me levou a tratar deste tema não foi apenas o comportamento feminino, mas uma atitude que me foi relatada em conversa, os homens que não permitem que suas filhas, namoradas ou esposas treinem o Jiu Jitsu por conta do “agarramento”.

A exclusão feminina nas práticas corporais já ocorre há muitos anos, e sempre há um interesse por trás de tais práticas, podemos citar a ginástica feminina no século XIX, visando à harmonia das formas femininas e prepará-las para a futura maternidade.

Já no século XX era permitida a participação das mulheres em algumas atividades esportivas consideradas leves. A domesticação era o foco, transformá-las e condicioná- las ao lar ou a família, e tal prática era aceita e defendida por algumas mulheres. Esta relação entre a intensidade ou dificuldade das atividades se dava pela intenção de “feminizar” as mulheres, lhes dar delicadeza, como se uma mulher mais rígida deixasse de ser mulher por este motivo. O que nos leva a refletir na relação do agarramento no Jiu Jitsu, o contato físico e a preocupação com as modificações corporais proporcionadas pela arte, práticas tão criticadas.

Enfim, passam despercebido pelo agressor e pelo agredido as formas de violência e dominação, contribuído assim para o prolongamento destes tipos de atitude.

Uma mulher não deixará de ser mulher por ser forte, nem deixará de ser integra por se relacionar com homens numa atividade esportiva. Quantas pessoas você conhece que gostaria de praticar algo e foi proibido por seus pais, religião, condição social ou preconceito? É um tipo de dor que só quem passa sabe onde dói.

Aquela velha máxima: “Ou eu ou o Jiu Jitsu”, “isso é coisa de menino”, “vai se esfregar” são violências simbólicas, ferem e fazem sofrer mesmo que não “sangre” visivelmente, pois criam restrições e inibições. Faz pensar que não é seu direito estar dentro de um dojô.

O professor de Educação Física, Mestre em Educação Elson Moura, Faixa preta de Karatê e que também trabalha e discute lutas na Universidade Estadual de Feira de Santana e em todo meio acadêmico no nosso país, deu uma contribuição a BJJGILRSMAG, pontuando alguns fatores de relevância a respeito desta discussão:

Elson Moura – “É inegável que vivemos em uma sociedade patriarcal e machista ainda que admitamos que de uma forma diferente de épocas anteriores. Isso pode ser verificado na desigualdade de oportunidades no mercado de trabalho (na diferença de salários, etc.), na educação diferenciada (meninos educados para serem fortes e viris e meninas educadas para serem delicadas) e nas expressões de violência. Sobre esta última, apenas um exemplo (dramático): de acordo a Polícia Federal, o tráfico de mulheres movimenta anualmente R$ 9 bilhões. Perde apenas para o tráfico de drogas e armas.

Estranho (embora louvável) seria se na prática de Jiu Jitsu (ou qualquer outra luta) tivéssemos uma postura diferenciada. É inegável, também, que a gênese desta relação de desigualdade é histórica e social e, portanto, mutável. Prova disso é que já tivemos comunidades inteiras pautadas pela ginecocracia; tipo de organização que tinha a mulher como centro das relações (nem por isso, esta relação era pautada por algum tipo de opressão das mulheres em relação aos homens).

Logo, a superação do machismo pressupõe, também, a superação da desigualdade de acesso às lutas, neste caso, o Jiu Jitsu. Esta, embora não seja uma tarefa de fácil execução (pelos motivos acima expostos), é uma tarefa necessária, possível e urgente.

Para tal, precisamos superar algumas limitações de entendimento que são presentes no dia-a-dia da prática de luta:

1- Uma pretensa diferença fisiológica entre homens e mulheres, tendo os primeiros uma vantagem em relação às mulheres quando se trata de algumas modalidades, só encontra sentido (se é que encontra) no seleto grupo de atletas de alto rendimento, ou seja, percentual baixíssimo. Nestes casos, a divisão por gênero nas competições já resolve esta questão, esta diferença.

Na prática do dia-a-dia, ou seja, os praticantes ditos comuns, a diferença se dará pela dedicação aos treinos. Ou seja, independe de ser homem ou mulher. Isso é válido especialmente (mas não exclusivamente) entre as crianças onde esta diferença física não se expressa de forma tão contundente;

2-  E mesmo quando esta diferença acima é acentuada a expressão “a mulher não pode…” deve ser substituída pela expressão “olha o que a mulher pode fazer!”. Apontar limites (que os homens também têm) é, ao mesmo tempo, apontar onde conseguimos chegar. Ainda temos possibilidades de superação destes limites quando temos ajudas externas;

3 – Não podemos ter medo das aulas mistas, exceção feita aos casos onde isso seja extremamente necessário. Para educar homens e mulheres para uma nova lógica, precisaremos reproduzir na aula a mesma relação encontrada na sociedade. Nesta, eles não estão separados. Por óbvio, esta relação precisa se dá em um novo patamar, ou seja, do respeito pelas diferenças.

4 – É fundamental que saibamos que é exclusivo da espécie humana a capacidade de alterar o sentido (aquilo que motiva) das atividades. E, portanto, algo que surgiu como arte bélica (marcial vem de Marte, deus da guerra) pode, em outros contextos, ser praticada, motivado por outros objetivos: estéticos, terapêuticos, lúdicos, defesa pessoal, como exercício físico, etc. E mesmo que praticado pelo sentido bélico, por serem as mulheres as que mais sofrem com a relação desigual de gênero, seriam elas mesmas as mais indicadas à prática do Jiu Jitsu ou outras lutas. Dados para justificar esta necessidade não nos faltam.

5- Ainda na trilha do ponto acima, e pensando a prática do dia-a-dia, precisamos abrir discussões nos espaços de prática sobre o sentido de uma aula onde homens e mulheres estarão em contato quase que pleno sem que isso tenha nenhuma denotação sexual. Repetimos, mesmo numa posição de guarda (só um exemplo), o sentido (a motivação) da atividade passa longe dos sentidos sexuais. Já ouvimos, aliás, depoimentos de homens que dizem que no momento da luta nem dá tempo de pensar nisso. Homens e mulheres precisam ser educados para este sentido.

Por fim, e repetindo o que já falamos, não podemos nutrir a ilusão que a alteração da postura nas aulas de Jiu Jitsu pode, tal qual um passe de mágica, automaticamente mudar esta relação na sociedade como um todo. Longe de desanimar os(as) professores(as) e praticantes de lutas, esta afirmação nos leva a refletir que nossa atuação no dojô (local de aprender o caminho) deve ser acompanhada de uma prática cotidiana pautada pelo respeito às diferenças. Respeitar as diferenças é pensar numa igualdade de fato dentro e fora do tatame. Oss!!

Pedro Thiago “Sayajin”, Professor faixa preta e competidor, líder da equipe Sayajin Jiu Jitsu, também contribuiu para a BJJGIRLSMAG. Pedro Thiago: “Outro dia ouvi um amigo comentar que recebeu queixas de uma colega por ser tratada com indiferença no tatame, por ser mulher e praticar Jiu Jitsu. O pior que o cidadão ainda é graduado! Onde deveria mostrar bom exemplo, ele acaba alimentando pensamentos que fazem parte de um passado primitivo. Preconceito com mulheres, raça, sexualidade, condição financeira ou cor da pele é um sinal de imaturidade ou insegurança. Tem gente que precisa crescer, ou se descobrir!” Isso na melhor das hipóteses! O tatame é para todos! Oss.

Precisamos cada vez mais entender o funcionamento de nossa sociedade para que possamos entender alguns tipos de práticas negativas que são sofridas pelas mulheres no meio esportivo, em especial o Jiu Jitsu. Faz-se necessário cada vez mais alertar os problemas que nossas guerreiras passam cotidianamente e que a origem destes problemas deriva das relações sociais. A partir de discussões sobre estes tipos de violência, poderemos avançar a um novo tipo de convívio, pacífico e respeitoso com nossas companheiras de arte. Por mais respeito às meninas, por favor. Aquela “piadinha” machista pode causar mais danos do que você imagina.

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REFERÊNCIAS

Violência: seis reflexões laterais/ Slavoj Zizek; tradução Miguel Serras Pereira- 1.ed.

São Paulo: Boitempo,2014

Miriam Adelman: Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina, Estudos

Feministas, Florianópolis, 11(2): 360, julho-dezembro/2003

O Poder simbólico; Pierre de Bourdieu, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989

http://monografias.brasilescola.uol.com.br/educacao/os-processos-violencia-simbolica-

orientacao-educacional.htm#capitulo_4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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