A realidade trava batalhas cruéis com nossos sonhos. Chega a ser covarde às vezes. Por mais poder de inspiração que os sonhos possuam a realidade é uma foice. Um jardineiro que os vai podando, como galhos… Antônia sempre acreditou que os galhos dos seus sonhos deixavam pelo caminho sementes, e que mais cedo ou mais tarde brotaria da terra uma muda, lhe surpreendendo. Era a esperança dizendo pra ela: Tente novamente! Tente mais uma vez…

Ela sempre foi fascinada por filmes de artes marciais. Pelos enredos de superação que eles traziam. O menino perseguido pelos garotos ricos da escola vencendo um torneio e ganhando respeito. Para uma criança que é filha de pais pobres superar é regra. Não acompanhar seus amigos com seus tênis novos todo ano na escola, não fazer passeios e viagens nas férias. Antônia acostumou cedo a não se importar, mas, sem deixar de sentir lá dentro umas faíscas. Ela sentia que aquilo um dia iria mudar.

O judô foi sua primeira paixão. Assistindo a trechos da olimpíada, sem entender nada, seus olhos não piscavam, porém, fazia um ar de que estava inteirada de tudo que se passava. O próximo ataque, a reação do atleta para o qual ela torcia… Ela poderia passar o dia todo assistindo aquela coisa fascinante, aquelas projeções, aqueles quimonos, a torcida. Infelizmente, teve que desligar a TV para que a conta de energia não consumisse um pouco mais do suor do seu pai. O que não evitou que aquelas imagens saíssem de sua cabeça por um longo tempo.

– Mãe, teria condições de eu entrar no Judô? Questionou envergonhada a mãe.

– Veremos isso depois filha. Sem querer desestimular a filha, que já era privada de tanta coisa, respondeu.

Era doloroso para sua mãe, ela sabia, por isso não incomodava tanto com tal assunto. Seguia imaginando os treinos, como seria seu quimono. Simulava competições no quintal de casa… O tempo foi passando, em meio a tantos “deixa pra lá” aquilo deixou de ser importante para Antônia. Era um galho caindo… A realidade e sua foice, sempre implacável, podou caminhos diferentes em sua vida. Ela continuou estudando, se dedicando ao máximo. Chegou a adolescência.

Encerrando sua vida no ensino básico, vinha a hora de escolher os rumos das coisas, numa faculdade ou universidade. Com um sorriso irônico, Antônia já sabia que aquilo não pertencia a sua realidade. Dedicada, esforçada e disciplinada, conseguiu emprego rápido, sempre se destacando em cada função exercida. Chegava rapidamente a cargos de importância. Gerência, supervisão… Era o único caminho que ela via para transformar aquilo que ela já não acreditava mais, no destino. Não por acaso, procurou respostas para sua vida em várias religiões, lia Jesus, Buda, Krishina, candomblé, espiritismo. Não se conformou com as respostas.

Ela sentiu na pele muita dificuldade, disputando com os homens no trabalho. Principalmente insubordinação de funcionários pelo fato dela ser mulher. Teve que ficar atenta a qualquer equivoco, pois logo viriam os comentários machistas: Só poderia ser uma mulher… Olha ai essa louca! Esse chefe é maluco. Antônia conhecia a engrenagem do sistema. Sabia o porquê de tais ofensas. Sabia que era uma mulher que, como pouquíssimas, saiam da pobreza e alcançavam altas posições dentro do mercado. Ficava muito triste ao ver os semblantes das outras mulheres, sempre contratadas para cargos menores. Sem oportunidades…

Numa viagem de trabalho, que duraria um tempo considerável, ela decidiu dar uma volta pela cidade. Andou por ruas, visitou museus, cinemas, bares. E por incrível que pareça, ao cruzar uma avenida, deu de cara com uma academia de jiu-jitsu. As pessoas estavam saindo, a aula já teria sido encerrada. Mas ela ficou observando a movimentação. Os alunos que ainda estavam no tatame conversando, o professor tirando dúvidas de alguns visitantes. Ela sentiu uma ansiedade estranha, uma vontade de ficar lá. E no outro dia se escreveu para treinar por alguns meses. O professor perguntou se ela já treinara em sua cidade, ela respondeu que não, lembrando brevemente de seu sonho de infância… Bem brevemente, sem nenhum apego sentimental.

A viagem durou o tempo suficiente para que Antônia chegasse até a faixa azul. Para que ela conquistasse alguns campeonatos, alguns torneios, para que ela se sentisse feliz e reconhecida. Os olhares não eram mais de tristeza, sobre ela, eram olhares de inspiração. As meninas treinavam para ser iguais a ela. Ela contribuía dando conselhos, ajudando nos treinos, ao ponto do Sensei oferecer uma vaga de monitora para ela. Prontamente, Antônia aceitou o desafio, se jogando de cabeça, corpo, espírito. Um mergulho tão profundo que lhe fez repensar suas prioridades. Mesmo tendo sido tão difícil chegar onde ela chegou naquela empresa, ela estava balançada a largar tudo por uma vida mais simples, sendo instrutora de jiu-jitsu. E Antônia largou.

Ela conheceu meninas que passavam as dificuldades que ela passou na infância, e não pensava duas vezes em ajudar. Ao se aproximar do jardineiro novamente, a realidade, de algum modo aquilo lhe remeteu à sua casinha, suas roupas repetidas, sapatinhos velhos. Ela fez uma viagem no tempo, sentindo todas aquelas angústias, olhando nos olhos das meninas na academia. A realidade, agora, encontrou uma inimiga. Antônia criou um projeto, para ajudar atletas que não poderiam pagar mensalidades.

E, num dia qualquer de aula, depois que todos a deixaram sozinha, ela teve uma visão olhando pro tatame. Ela viu sua imagem, criança, correndo pela academia… Brincando feliz. Ela sentou, ficou observando… Observando como era uma menina linda, inocente… O quanto é desumano uma criança ter suas aspirações despedaçadas. Se abraçou com sua imagem, pequenina, cheia de sonhos. Um abraço forte. Ela sentiu a faísca no estômago… A sua visão lhe agradecia muito emocionada:

– Obrigada por realizar meu sonho. Estou muito orgulhosa do que me tornei!

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