Jiu-jitsu e as questões de gênero: Por que precisamos falar das pessoas trans?

Sabemos do poder simbólico que existe na representatividade. As mulheres estão ocupando cada vez mais o jiu-jitsu através da imagem das pioneiras da arte, como também dos recentes destaques nas competições femininas. Isso cria uma identificação em quem tinha receio de praticar uma atividade predominantemente masculina.

Recentemente, fiquei muito feliz em conhecer o projeto Piranhas Team, que possibilitou o acesso à defesa pessoal para a população LGBT. Um passo muito importante, diga-se de passagem, e representativo também, para quem possui o interesse em abrir espaço para um público tão carente de aceitação.

Um público que, para falar a verdade, pede socorro e vê no jiu-jitsu ou em qualquer luta a possibilidade de preservar sua integridade física. Não que eu queira menosprezar outras artes, mas é bem visível a capacidade que o jiu-jitsu possui de trabalhar a autoestima e a segurança para enfrentar situações adversas.

Estamos preparados para receber este público? Já fiz esta pergunta em outro texto, e hoje trago um amigo para nos contar um pouco da realidade do universo desconhecido dos homens e mulheres Transexuais. Bruno Santana, Transativista, graduando em licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual de Feira de Santana, Militante do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) e do Coletivo Transs Pra Frente. O texto que segue é dele, e ele vai falar da importância do jiu-jitsu abrir as portas das academias, mas também abrir as mentes e corações dos praticantes e do poder representativo que isso possui para a comunidade.

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trans
Bruno Santana

Infelizmente, vou ter que começar este texto trazendo dados alarmantes sobre a violência e Transfobia sofrida pela população trans no Brasil:

Segundo dados da TGEU- Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata pessoas Trans no mundo, em segundo lugar está o México que mata quatro vezes menos. A expectativa de vida de uma pessoa Trans aqui é de 35 anos, diferente de todo o resto da população Cis (A palavra Cis vem do latim, e significa do mesmo lado, utilizamos o termo Cis-gênero ou Cis para se referir as pessoas que não são trans, ou seja que foram designadas ao homens ou mulheres ao nascer e se identificam como tal) que de acordo com os dados do IBGE é de 76 anos. Por aí você já percebe o tamanho da problemática e a necessidade de políticas públicas que de fato garantam a cidadania, dignidade e respeito a essa população. A sociedade está nos exterminando, todos os dias recebo notícias de pessoas Trans e travestis que foram assassinadas, um dos casos que ganhou repercussão recentemente nas redes sociais foi o caso da Dandara, a travesti que foi brutalmente assassinada no Ceará e que teve sua morte filmada e divulgada em vídeos na internet.

Não temos nossas identidades de gênero reconhecidas e legitimadas nessa sociedade Cis-heteronormativa que não compreende outras possibilidades de ser gente, fora desse binarismo de gênero imposto:  Homem (pênis) x Mulher (Vagina). Vivemos excluídos e somos marginalizados, patologizados, violentados e negligenciados em todos os espaços… Não temos acesso à saúde, à educação e nem ao mercado de trabalho. Não é à toa que 90% das mulheres trans e travestis se encontram na prostituição.

Será mesmo que elas estão ali por pura vontade? Quando lhe tiram os direitos e humanidade o que te sobra? Sobra o corpo, e é esse corpo que será vendido para que minimamente consiga sub-existir

Comparado às mulheres trans e às travestis, nós, homens trans, ainda somos muito mais invisibilizados e silenciados muitas pessoas sequer sabem que nós existimos. Mas começamos a ganhar mais visibilidade nos últimos 10 anos através do movimento de homens trans IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) que é um movimento de luta e resistência transmasculina, que atua no sentido de levar conhecimento e empoderamento e visibilidade aos homens trans no Brasil. Assim como as mulheres cis, sofremos também diversas opressões, nossos corpos são lidos como estupráveis, sofremos machismo, misoginia, transfobia, violência obstétrica e uma série de violências que marcam da pior forma as nossas existências. Ainda estamos lutando por direitos básicos, o direito de ter nosso nome reconhecido e utilizar o banheiro de acordo com nossa identidade de gênero.

Você consegue imaginar o que é isso? Ter que criar estratégias todos os dias para poder fazer suas necessidades fisiológicas sem ser morto ou violentado?

Em relação à inclusão de pessoas trans nas Lutas, seria uma reparação muito importante e precisamos mesmo ocupar todos os espaços. Eu sempre pratiquei esportes e sempre tive habilidades com as lutas, já pratiquei capoeira, karatê, e kick boxing na adolescência, e essa relação com o esporte foi um dos motivos pelo qual escolhi a educação física como profissão.  Tenho vontade de conhecer mais de perto o jiu-jitsu, tive uma experiência na disciplina de lutas (destaco as presenças fundamentais que você e a Virna tiveram nisso) que pra mim foi bastante rica, provocando diversas reflexões sobre o meu corpo. Infelizmente, toda essa estigmatização e exclusão nos afasta das relações de convívio social, nos tirando o direito de ter lazer ou praticar alguma modalidade esportiva. Principalmente aqueles esportes que exigem o contato físico mais direto, como é o caso das lutas.

Como fruto dessa sociedade, o esporte também reproduz as doenças dessa sociedade capitalista, as desigualdades sociais, de gênero, de classe, o machismo, a misoginia, a LGBTFOBIA… Dentre outras tantas coisas.  Sei que esses problemas são estruturais e crias dessa sociedade opressora.

Vi nas redes sociais uma iniciativa bem bacana de uma academia que estava dando aulas de lutas para a população LGBT, falo LGB, porque não tinha nenhuma pessoa Trans, infelizmente o Trans ainda é invisibilizado, falta conhecimento e preparo dos professores para lidar com essa diversidade de gênero. Gostaria de ver travestis, mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias ocupando esses espaços, praticando esportes, participando de competições, aprendendo defesa pessoal, sem dúvida seria mais uma possibilidade, mais uma arma a somar na luta contra a transfobia nossa de cada dia…

Mas será que seremos respeitados nesses espaços? Como é que vocês pessoas Cis, irão lidar com nossos corpos na hora do treino?

Temos algumas pessoas Trans que são atletas e que competem em algumas modalidades esportivas, mas ainda é um número muito pequeno comparado ao restante da população. Isabelle Neris é a primeira pessoa Trans autorizada a jogar em times femininos no Brasil. Ainda há muita coisa a ser feita dentro do esporte para que este possa ser chamado de inclusivo, a inclusão precisa ser na sua totalidade.  O acesso tem que ser para todas as pessoas.

Para que isso aconteça precisamos falar sobre gênero nas escolas, nas academias, nas universidades, nas aulas de educação física, em todos os espaços…Precisamos ressignificar nossa linguagem machista, sexista, racista, Lgbtfóbica…

Precisamos enquanto professores dizer para nossos alunos que as piadinhas preconceituosas na hora do treino reforça o ódio e mata pessoas todos os dias.  Não consigo imaginar uma aula de lutas que não fale sobre machismo, que não problematize as desigualdades sociais e de gênero…Penso que a mudança começa por ai, em cada atitude dessa.

A sociedade precisa compreender que existem outras formas de ser e estar no mundo, que não é genital que define gênero de ninguém… Que o gênero, assim como a sexualidade é um construção social. É diante de toda complexidade que é o nosso corpo humano, não podemos limitar a nossa existência a um único órgão. As pessoas Trans assim como todas as populações que foram historicamente marginalizadas por esse “Cis-tema” também precisam ter acesso a tudo que foi produzido pela humanidade.

Precisamos de escutas sensíveis, de professores que entendam o seu papel na formação humana, precisamos de Senseis e mestres de artes marciais que ensinem o respeito a diversidade humana e a importância de acolher o diferente nas suas aulas…

 Falta conhecimento, falta empatia, falta conscientização.

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O COI, Comitê Olímpico Internacional, diminuiu as restrições para atletas transgêneros  e intersexuais (variedade de condições em que uma pessoa nasce com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não se encaixa na definição típica de sexo feminino ou masculino) havendo assim uma maior participação desta(e)s atletas. Entretanto, muitas atletas ficaram preocupadas com a chegada ao pódio lhes render comentários a respeito de sua condição histórica de gênero. As novas diretrizes solicitam que as atletas que desejam competir nos eventos femininos tenham os níveis de testosterona abaixo de 10 nmol./L por pelo menos 12 meses. Já foram feitos estudos que identificaram em atletas de elite que 99% das mulheres trans possuem níveis de testosterona abaixo de 3 nmol./L, e após a cirurgia, os níveis ficam abaixo desta medida.

A médica chefe do Providence Portland Medical Center, Joanna Harper, em uma entrevista para a revista Vice, afirmou existir desvantagens para mulheres trans no esporte. Além do conhecimento cientifico, a médica é uma atleta trans e passou pela experiência da terapia de reposição hormonal. Ela afirma que homens em corridas de longa distância desenvolvem cerca de 12% mais velocidade que uma mulher, e que houve uma redução no seu ritmo de corrida após o tratamento. Outras desvantagens estão na altura das atletas trans em comparação às atletas cis, não esquecendo que atletas trans perdem massa muscular.

Mas, a pior desvantagem é ser atleta trans em uma sociedade discriminatória. A atleta e mulher trans Chloe, universitária de 20 anos relatou na mesma entrevista que sofreu humilhações e discriminações tanto do público quanto das atletas em alguns jogos. O que atrapalha o rendimento e concentração de qualquer ser humano.

Sendo uma atividade de rendimento ou não é um dever do estado e da sociedade garantir o acesso a todo e qualquer ser humano, e uma garantia mínima e imprescindível de dignidade humana, prevista pela declaração dos direitos humanos de 1948 e em nossa constituição Federal. Façamos então o nosso papel de incluir homens e mulheres trans com todo respeito e dignidade que pregamos cotidianamente em nosso esporte. Que nossos brados de “jiu-jitsu para todos” extrapolem a mediocridade e a estupidez da discriminação e da segregação de nossa arte suave. A evolução não pode ser limitada apenas a técnica.

Oss!

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